terça-feira, 27 de julho de 2010

Tempo, tempo, tempo...

Faz alguns posts que eu reflito [sempre bom] sobre o tal do tempo. Acontece que faz tempo que não sei bem o que é tê-lo, então acabo tendo mesmo que escrever a respeito pra ver se lembro. As coisas vão se amontoando, as tarefas vão ficando pra depois e se acumulando; quando vejo, adeus fim de semana, adeus radiola, adeus máquina fotográfia. Ah, e adeus blog.

A minha "falta" de tempo foi motivo de piada no passado, quando era apenas uma desculpa esfarrapada para evitar essa ou aquela programação que eu não estava com muita vontade de fazer. Eu não mentia, não é isso, mas as atividades que me mantinham ocupada poderiam ser facilmente renegadas, se a proposta fosse muito tentadora (ou o convite, uma intimação). Hoje, minha falta de tempo continua sendo piada para alguns, mas motivo de reclamação e até de rompimento para outros. A verdade é que eu não tenho conseguido administrar as obrigações e acaba que o prazer fica pra depois.

Aliás, falando nisso, me ocorre agora que nunca foi muito diferente. Na minha escala hierárquica, os primeiros lugares sempre foram ocupados pelo que eu queria deixar pra depois, mas não podia. Também tinha colocação inferior para o que merecia mais atenção e muito mais tempo (perdido) com aquilo que não tinha nenhuma importância.

Muitas vezes fico com a sensação de estar perdendo tempo...
Dá tempo de corrigir?
(...)

terça-feira, 20 de julho de 2010

Um ano, uma vela a mais

Datas como esta dão sensações diversas. Eu sempre gostei de ver os anos passando, sempre queria ficar um ano mais velha para desfrutar das "liberdades" de ter 8, 9, 10 anos de idade. Aos sete, queria chegar logo aos 10 e perguntava: "mãe, quando eu fizer 10 anos, vou poder passar ferro nas roupas de Eduardo?". Aos 12, vi um carro passando pela rua, num dia que voltava na escola, e contei nos dedos quantos anos ainda faltavam para eu completar 18 anos e poder, também, dirigir. "Seis anos ainda. Droga". Hoje, faz nove anos.

Acho que falar que o tempo é impiedoso é redundância, lugar comum. Ele é muito mais que isso. Faz parte de sua natureza mudar as coisas, transformar as pessoas e dar novos sentidos. A expressão "dar tempo ao tempo" pode significar tanta coisa. Antes de tudo, insiste que temos que ter paciência. As coisas têm seu próprio momento e nada que façamos vai acelerar. É uma máxima tão comum esta, mas tão esquecida.

Espero apenas que as mudanças sejam mais brandas, quiçá somente físicas. Que eu continue a acreditar fielmente no que é importante hoje, conjunto que inclui amigos, verdade e esforço.


O tempo sempre foi bom comigo; tenho ainda a impressão que consigo aperfeiçoar a minha capacidade de pensar. Transformar verdades é um ato corriqueiro e eu sempre me surpreendo. Quase diariamente. Mas a mesma capacidade que o tempo tem de mudar as coisas, ele tem que firmar outras. Hoje, no dia que completo 27 anos, tenho uma fria convicção de que ainda viverei para ver tantas outas verdades mudarem de lado. Só quero uma vela a mais a cada ano para juntar os amados. Preenche a vida.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Seis meses depois, o que restou do Haiti?

Com informações da ONU e do Terra.com

Hoje faz seis meses que o Haiti foi destruído pelo terremoto. Há seis meses, não se falava em outra coisa a não ser nas milhares de vítimas, na devastação. Foram 300 mil mortos, milhares de feridos e 1,2 milhão desabrigados.

Hoje, parece que não há mais espaço para os haitianos nas pautas. Mas eles ainda são 1,5 milhões vivendo em acampamentos, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgados durante coletiva de imprensa em Genebra, hoje. Mesmo assim, experimente fazer uma busca no Google; há poucas informações sobre a atual situação do Haiti.

O presidente René Préval disse que há uma grande desproporção entre os fundos necessários para a reconstrução do Haiti e os recebidos até o momento, e previu que o processo de reconstrução "não será fácil". Somente para tirar os escombros das casas destruídas, disse o presidente, será necessário US$ 1,5 bilhão. Realidade: as doações estão em torno de US$ 35 milhões e o apoio ao orçamento nacional, apenas US$ 16 milhões.

O chefe de Estado anunciou oficialmente o lançamento da fase de reconstrução para "eliminar as barracas", onde residem os desabrigados desde o dia da tragédia.

Representantes da ONU disseram que a reconstrução do país deve levar anos e, por isso, é indipensável o apoio internacional. Segundo o porta voz da Organização Mundial de Saúde (OMS), Paulo Garwood, os termores destruiram oito hospitais e danificaram 22 unidades de saúde. Ele disse ainda que, apesar da precariedade, uma pesquisa de abril deste ano mostrou que 90% dos habitantes de Porto Príncipe já têm acesso a saúde através de clínicas móveis. A OMS afirma que mais de 1 milhão de pessoas têm acesso a água potável.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Pnud, lembra que projetos de dinheiro por trabalho foram criados nas primeiras semanas após o terremoto para ajudar a população. A agência diz que mais de 115 mil trabalhadores participaram da iniciativa ou continuam contratados para tarefas como remoção de entulho e limpeza de ruas. 40% desse total são mulheres.

O Programa Mundial de Alimentos, PMA, anunciou que já forneceu comida para 4 milhões de pessoas no Haiti desde o terremoto que atingiu o país, há seis meses. As operações agora estão focadas em uma estratégia de recuperação. Em balanço, o PMA divulgou que a distribuição de biscoitos energéticos e comidas prontas começou nas 24 horas que seguiram o terremoto de 12 de janeiro. Muitos funcionários morreram na tragédia, que deixou ainda escritórios e depósitos danificados. Programas de trabalho por dinheiro e comida, que já beneficiam 30 mil trabalhadores em projetos de remoção de entulhos e canais de irrigação. Até o final do ano, o objetivo é alcançar 140 mil trabalhadores e famílias, atingindo 700 mil pessoas.



O Governo do Brasil entregou ao Governo do Haiti e ao Programa Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas a contribuição de 2 milhões de dólares, que serão utilizados para a compra local de alimentos, destinados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar do Haiti.

Aqui, uma foto vencedora de um prêmio do Unicef, tirada em 2007 por Alice Smeets. Imaginem a realidade hoje:



domingo, 11 de julho de 2010

As linhas sem limites de "Dionisíacas"

Há uma linha tênue entre os sentidos despertados pela arte; mais ainda pela cênica, a mais vivaz de todas. O palco é o espaço ideal para os mais limítrofes sentimentos. Em cena, amor, desejo, sexo, pederastia, expectativa, medo... tudo se mistura em meio à teatralidade - caberia ao expectador o papel de decidir o que sentir. Se houvesse escolha.



Em "O banquete", último espetáculo de "Dionisíacas em viagem" da Cia Teatro Oficina (do grande Zé Celso Martinez, de São Paulo) transformou o Nascedouro de Peixinhos no limbo. Um verdadeiro. A peça é contagiante, o próprio ambiente costura atenções ao centro, onde se passam todas as cenas. Estamos falando de um modelo diferente de ver teatro (que o Oficina já usa em São Paulo) onde o público fica em arquibancadas, como em uma arena. Do alto, tem-se a visão do todo. E que todo.

Poucas coisas dão tantas sensações quanto o teatro do Oficina; sensações sem rótulos pré-concebidos, sem precedentes. O expectador, por menos disposto que esteja a entrar no ciclo "celsiano", nunca passará incólume àquilo que o diretor quiser que se sinta. Ao entrar num espetáculo do Oficina, o público passa a ser propriedade dos atores, da cena. A não ser que desista da viagem a tempo, ingressou num caminho sem volta.



Na história encenada, Zé Celso transmuta filosofia grega em tragicomédia bem aos seus moldes, onde entram o nu (devido ou nem tanto), a ironia, o escracho, a força do (bom) texto cênico, música e tantos outros ingredientes tão bem encaixados que lhe creditam o predicado de diretor primaz. Ninguém faz teatro como Zé Celso Martinez Corrêa.

Frutas são servidas nas arquibancadas e vinho é distribuído por personagens seminus. Faz parte dos ares de realidade que “O banquete” precisa para contagiar os mais predispostos expectadores a se despir, literalmente, de moralismo e de suas roupas. Qualquer um deles que se choque com genitais à mostra tem sinais, logo no início, de que está no lugar errado.



Psicanálise e filosofia não ficam em segundo plano. Aliás, não ficariam, se os corpus nus e as cenas pornôs e eróticas não tivessem se sobressaído aos olhos de boa parte dos expectadores que estiveram nesta noite no Nascedouro. Não se trata de moralismo, mas quando a história é totalmente ignorada (como foi) o que sobra aos sentidos são nudezes totais e insinuações nada inocentes de atos sexuais - tudo aquilo que podemos captar por mero instinto. Então em meio a tanta complexidade, quando os atores discursam sobre amor, existência, sexo e outros tantos vieses, parte da plateia apenas figura na curiosidade por entidades míticas como Zeus, Hera, Eros, Pênia, Jesus e Fidel Castro que se mostram muitas vezes em posições despudoradas (ginecológicas, diria, com mais exatidão).

“Dionisíacas” é um complexo teatro para ver e sentir. Pena que a gritaria estarrecida nos trouxesse tantas vezes de volta à realidade. Principalmente quando Dona Rosa, uma moradora local, totalmente sucumbida aos encantos dos (excelentes) atores do Oficina, resolveu livrar-se das roupas e ficar totalmente nua. A gritaria aumentou por seu nome e nem os pedidos de “presentear a heroína com o silêncio” fizeram acalmar os ânimos. Para mim, quebrou-se o clima da peça e pesou o incômodo de não conseguir mais entender: restou-me ver atores e plateia trocando beijos antes de desistir e pegar o rumo (cheio de lama) de volta pra casa. Mesmo assim, foram horas valiosas.


CENA - pomba-gira coloca "voluntário" da plateia em situação limite

E, sim, estou sendo absolutamente exata quando predico “O banquete” como “teatro para ver e sentir”. Em posição difícil de descrever, um dos atores deixa o ânus à mostra e ao alcance dos dedos nada escrupulosos de Zé Celso Martinez. Sem saída: ele crava o indicador no ânus do companheiro de cena; ao retirar, joga-lhe vinho e sorve-lhe as partes. Esta é apenas uma das cenas que poderia fazer os mais moralistas execrarem o enredo.

Sem contestações, a dramaturgia de Zé Celso é inenarrável. Não por pudores ou moralismo, mas por ser gramaticalmente impossível descrever todas as sensações (inclusive o cansaço físico) que as provocações causam em quase quatro horas initerruptas de peça. É experiência única aos corajosos, (quase) imunes às agressões cênicas, amantes dos sentidos limítrofes que o bom teatro é capaz a partir de uma alma nada sã. Espero vida longa aos delírios de Zé Celso Martinez.

     Zé Celso Martinez - pederastia, audácia e teatro

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Todas as coincidências desta vida

Hoje faz 20 anos que Cazuza morreu.
Hoje, Ezequiel Neves, finalmente, acabou com a espera de 20 anos. Justamente hoje.

Para esta data, escolhi uma música que representa muito o que Cazuza é. Interpretando "O mundo é um moinho", ele agrega o roqueiro à suavidade do poeta; o samba à rebeldia; a música às suas dimensões.




Preparando texto. É que hoje foi difícil.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Pequena explicação

Atendendo ao pedido de um grande amigo, cedi-lhe espaço aqui no IC para publicar algumas (muitas) linhas sobre José Saramago, neste momento em que vivemos, muitos, um luto literário. Creio que somente quem sentiu as literatices ásperas do português poderá compreender a falência múltipla que vivemos, nós, estes muitos, desde a sua morte. Também creio que uma narrativa tão peculiar sobre o assunto, a morte, tratada como fim, só pode partir de alguém que o viveu de forma bem próxima.


Capa da Playboy portuguesa

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Passagem
Pablo Spíndola

Quando se tem uma notícia de falecimento, as reações são as mais diversas, geralmente associadas à relação de empatia que existia para com o falecido. Não é necessário conhecer ou ter proximidade, mas apenas nutrir pelo outro algum tipo de identificação. A morte sempre se apresenta como a imposição de um limite, a impossibilidade de contato que não precisa ser físico, mas é, fundamentalmente, um limite do que não se pode mais fazer.

A morte de José Saramago foi uma dessas situações em que, mesmo não tendo o contato íntimo, foi sentida pela identificação ou talvez, um pouco mais, pelo sentimento de orfandade.

Conversando com um amigo, ele retrucava essa idéia de lamentar a perda ou, como queiram alguns, a confirmação da ausência. Ele fez uma analogia que achei bem interessante: para a chuva, as gotas de água são e lhe dão corpo. Quando cada uma delas cai e se encontra com outras coisas, se desfaz, deixa a condição de chuva e passa a ser água em outras formas. Contudo, o mais interessante foi a constatação de que nenhuma gota cessa seu movimento de cair enquanto as outras encontram sua passagem. A chuva não para pela desintegração das gotas que a iniciaram.

Analogicamente, pessoas podem ser gotas e a morte, sua passagem de gota a não gota. Os que continuam vivos não param suas vidas em relação à morte de outrem, por maiores que sejam os sentimentos de luto, por maior que seja a proximidade do que passou. A vida não cessa por mais que os que continuam vivos insistam em não querer mais viver. O tempo, impreterivelmente, não para. A opção para vencer o tempo parecem ser duas: sair dele (e juntamente abandonar a própria vida) ou eternizar-se nele.

A imortalidade temporal foi associada ao registro e tomo aqui a ideia de registro de empréstimo da história, no sentido de que qualquer vestígio pode ser uma marca no tempo para constituir ou tentar montar um mosaico chamado passado.

A escrita, ou melhor, o registro escrito foi e ainda é a forma mais direta de imortalidade. Não por acaso, os que compõem a Academia Brasileira de Letras são denominados de imortais (mesmo alguns não merecendo mais que a indiferença). A idéia de registro aqui abrange as mais diversas formas, seja a codificação da música em forma de partitura até a formalização do raciocínio especulativo da química, física e matemática. Porém o tipo de registro escrito que mais interessa, comove, encanta e transforma ainda é a que transcende o seu sentido em si mesmo, seja a poesia ou o romance.

Saramago, em seus escritos, construiu sua imortalidade através dos desencantamentos do mundo. Homem de esquerda, teve como baliza a agudeza dos sentimentos do mundo. Para falar deles, incomodou a igreja, a mesma que na sua infância apoiara a ditadura portuguesa. E não se trata de justificar um pelo outro, mas perceber que Portugal foi esse país em que estava o escritor.

Filho e neto de agricultores, disse que o homem mais sábio a quem conheceu foi seu avô, de quem pode ter tomado de empréstimo uma oralidade na escrita que foi se tornando marcante em seu trabalho. Porém, outras marcas merecem melhor destaque, como a incomparável competência para falar de sentimentos e dar sentido aos universos emocionais que lhe cercavam, seja nos diálogos com deus, seja na franqueza da fragilidade das relações humanas.

Dos muitos Saramagos existentes, dois são muito especiais: o que dialoga com o homem inventor de deus e o que esmiúça os sentimentos humanos. O primeiro é mais célebre, que segundo o autor, torna deus um assassino: “como podem os homens matarem em nome de deus e não perceber que assim estão tornando seu deus um assassino?”. O segundo mostra a pequenez da vida em sociedade quando as coisas não vão bem.

O primeiro se torna um “novo” clássico da literatura: O evangelho segundo Jesus Cristo. E melhor do que falar a respeito do livro é lê-lo, tomando mais especificamente numa passagem em que o homem humaniza deus, ou melhor, mostra como deus é mais uma de suas criações: “O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue da mãe, viscoso de suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.”

Noutra passagem de beleza plácida, que só os grandes escritores conseguem fazer, Jesus é transformado em homem pela carne: “... o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua. Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim é que deveria estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido uma ofensa.”

E continua:


“Aprende teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria Magdala, que dizia, Calma não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte o seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando...”


O outro Saramago é o de "O ensaio sobre cegueira", recentemente adaptado para o cinema de forma convincente e com as limitações que existem em se passar de uma linguagem a outra (escrita para visual). No entanto, se o próprio escritor se debulhou em lágrimas aos assistir a adaptação de sua obra junto ao diretor (Fernando Meireles), não há motivos para se prolongar nessa discussão.

O livro é magistral, no sentido mesmo de parecer ser regido por um maestro, regido com intensidade e fôlego, que geralmente a boa música pode proporcionar. Porém, é um livro penoso de ser lido. Quero dizer com isso que é agudo como um faca amolada revirando as entranhas, como no dizer de Saramago: “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.”

Em sua história, os personagens ficam cegos, não têm nomes, são chamados pela ordem em que ficaram cegos ou por suas profissões. A causa da cegueira não é explicada, não precisa. O que interessa é o desdobramento dela, o comportamento, a crueza da sobrevivência relatada por uma mulher que foi a única a não ficar cega.

Cegueira e medo se confundem: “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui.”

Os relatos causam náuseas ao leitor mais desavisado entretanto a condição de sobrevivência é o pano de fundo da narrativa: “Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira, Isto é diferente, Farás o que melhor te parecer, mas não te esqueças daquilo que nós somos aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego, Acredito, mas não preciso, cego já estou, Perdoa-me, meu querido, se tu soubesses, Sei, sei, levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma, e se eles se perderam.”

O desfecho do livro tem seu ápice na constatação feita pela mulher do médico, única a enxergar: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” O brilhantismo de Saramago é intenso assim como suas palavras, não é necessário temas singelos para construções argumentativas que valem a pena serem lidas.

A constatação das mazelas humanas não conduz à desesperança. Muito pelo contrário. Em suas últimas entrevistas, Saramago repetiu uma frase de sua avó, que dizia que “o mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.” Incontestavelmente apaixonado pela vida e pelas pessoas, mesmo posto diante de sua finitude, da proximidade com a morte, queixou de não poder estar: “O pior que a morte tem é que antes estavas e agora não estas.”

Na sua passagem de gota à outra forma de água, Saramago, transformou. Modificou os seus leitores, combateu os seus críticos, sobretudo os que não tiveram competência para conviver com a diversidade de seu pensamento. A passagem dele assumiu uma forma que cultivou, como as gotas que caem de um regador, para fazer florescer um jardim. Porém também convidou à reflexão, tentou tirar da letargia o pensamento, buscou movimento no limite do pensar, ampliou as “dizibilidades” dos sentimentos do mundo.

A morte de Saramago é uma passagem. Aplacar a sensação de orfandade vai variar de acordo com cada um. Uma possibilidade para isso é entender o que Paloma, (personagem de Le Hérisson – O porco espinho –, filme dirigido por Mona Achache, inspirado em um romance de Muriel Barbery – L’ élégance du Hérisson) diz: “O que importa não é o fato de morrer, mas o que você esta fazendo quando morre.” Saramago escrevia um novo romance, talvez por isso a orfandade. Mas se as outras gotas pudessem falar com a gota que passou, esta denominada José Saramago, escutaria um sonoro “obrigado”.