segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Insultos infames sem pecados

A realidade não é para os fracos. Nós, os fracos, quanto postos diante dos fatos, trememos, tergiversamos, fingimos que a conversa não é conosco. Na década de 40, quando já insultava nos palcos sudestinos, Nelson Rodrigues fazia das infâmias públicas pedras que eram atiradas contra ele mesmo - porque a maioria era capaz de jurar de joelhos, com as palmas das mãos juntas, que jamais viu ou pensou algo semelhante ao que suas tramas escancaravam. Eram ofensas. Mas infâmias alardeadas geram reações que, aposte, têm maioria de concordância; o que sobra fica de aceite com aquele riso cínico abafado de quem não tem lá muita coragem de assumir.

Na última apresentação do último dia do Janeiro de Grandes Espetáculos, a história de "A mulher sem pecado" pareceu óbvia. E de tão óbvia, uma surpresa. A ótima montagem da Cia de Teatro Arlecchino, de Minas Gerais, é apresentada em cima de um cenário simples: porta, escada e o arcabouço da cena por onde atores entram e saem, se enfrentam, mas não se olham. Há insultos, delírios e cismas que se põem como verdades. Tudo bem Nelson.

Tudo verdade, inclusive as risadas e sussurros da plateia a cada deixa rodrigueana: "toda bela mulher deveria ser uma amante lésbica de si mesma". E não é? Aliás, se a verdade do palco fosse simplesmente essa, Olegário (interpretado por Paulo Rezende) estaria coberto de razão ao apontar Lídia (de Ana Luiza Amparado) como uma adúltera dissimulada. Segunda mulher do (falso) paralítico, Lídia lida com sombras, com dúvidas, acusações. Olhos a cercam por todos os lados, inclusive os do público, porque fica uma dúvida cruel se ela está ofendida como uma ré inocente ou assustada com a verdade. Por fim, está pouco claro se havia qualquer razão em Olegário, mesmo que ele mesmo concretasse que há tipos de mulheres que têm obrigação de ser infiéis. E a mulher de um paralítico, como a sua, seria uma dessas.

Nelson, atesta a história mal contada, era tarado, pornográfico, deturpador dos costumes, denigria a imagem da família e, se assim for, deve estar sendo (sub)utilizado até hoje como norte das produções televisivas. Tempero usual, como sal, das novelas. Mas não vamos adentrar discussões sobre o que se torna (despida) a célula da sociedade nas mãos de Nelson Rodrigues, porque se este é o ano do seu centenário de nascimento, as cansadas análises ficarão ainda mais esgotadas. Vamos nos poupar.

A questão aqui é que, ao perceber Nelson, é mais direto sentir que a vida é bem assim, cheia de dissimulações, de contradições. Que sua podridão, aquela que cai na sua cabeça em algum momento (lembra?), quando você descobriu que as coisas não eram "bem assim", é inerente e faz parte da fórmula. Se por seus traçados não há muitas saídas além da tragicômica, então por onde saem as surpresas, as interjeições e os incômodos que você sente? Onde está o novo na receita que deixava (e deixa) plateias incomodadas e pudicas como estivesse diante do novo inominável?

O problema é que Nelson virou rótulo. Já era, em seu tempo, mas hoje é o narrador dominical de "A vida como ela é..." (assim mesmo, reticente, como se esperasse complemento), que consegue ser muito mais amoral que qualquer reality ou dança modista. Mas quem olha pro umbigo no espelho e é romântico o suficiente para trocar as reticências de Nelson por um leve e assumido ponto (.)? Dizendo de outro jeito, a realidade é para quem aguenta sua força. Mas a moral é leve.

Leve, leve

domingo, 29 de janeiro de 2012

"Anjo pornográfico" - trechos

Nasce Suzana Flag


"A história começava com um casamento entre uma jovem feia e ingênua e um viúvo dominador que não conseguia esquecer a primeira mulher - linda, inteligente, fabulosa -, todos morando numa fazenda isolada. Até aí era um plágio de 'Rebecca, a mulher inesquecível', de Daphne de Maurier, que Nelson vira no filme de Hitchcock com Joan Fontaine e Laurence Olivier. (Os moleques chamavam o filme de 'Recível, a mulher inesquebeca'.) Mas, dali para frente, sentia-se o dedo rodrigueano: a primeira mulher morrera estraçalhada por cachorros em uma situação misteriosa. O viúvo, aleijado de uma perna, tinha um irmão irresistível que passara a dar em cima da nova cunhada. Esse irmão tinha uma amante escondida na floresta e, dentro da casa da fazenda, havia uma prima a fim do viúvo. Os dois irmãos tinha uma mãe dominadora e as subtramas ficam por conta de um pelotão de irmãs solteironas e virgens.

Leão Gondim, entusiasmado, rugiu OK. Os seis capítulos começariam a sair enquanto Nelson seguiria fazendo outros, para ter sempre alguns à frente. Precisavam de um título - e de um pseudônimo, porque Nelson, o autor 'sério', não queria assinar o folhetim. Para que não tivesse dúvida, deveria ser um pseudônimo feminino. Freddy concordou, mas achava que deveria ser um nome inglês - se fosse brasileiro, ninguém leria. Nelson insistia num nacional, algo assim como Suzana, nome da mulher de seu primo Augusto. Freddy cedeu e forneceu o sobrenome.

Daí nasceu 'Suzana Flag'. Com essa assinatura, o título do folhetim só pode ser aquele: 'Meu destino é pecar'."

sábado, 28 de janeiro de 2012

"Anjo pornográfico" - trechos

Vestido de noiva


"Depois de praticamente inventar o teatro brasileiro, o autor de 'Vestido de noiva' viu-se na avenida Rio Branco, escura e deserta, caminhando feito um zumbi em direção à leiteria Palmira, no largo do Carioca. Ele, sua mulher, sua cunhada Julieta e sua sogra foram comer o 'jantar Avenida' da leiteria: bife, batata frita e dois ovos. (Pediu pão por fora.) O resto do elenco fora comemorar na chique sorveteria 'A brasileira', na Cinelândia.

E sabe porque Nelson não foi com os outros para 'A brasileira'? Porque não tinha dinheiro.

Não lhe faltaria, evidentemente, quem disputasse a primazia de pagar por ele. Mas, naquele momento, ainda não se dera conta de que, fechado o pano de 'Vestido de noiva', ele deixara de ser o miserável que se tornara desde a morte de Roberto*.

A morte de Roberto. Quando Nelson pegou o bonde e volta para a praça Bandeira, já eram quase duas da manhã de 29 de dezembro de 1943. Sem tirar nem pôr - nem um dia, nem uma hora, talvez nem um minuto - completavam-se catorze anos que seu irmão morrera."

Livro de Ruy Castro
*Roberto Rodrigues, um dos irmãos mais velhos de Nelson, que fora assassinado pela recém-desquitada Sylvia Seraphim. Digamos que estava de pé no lugar errado, na hora errada. O tiro foi fatal.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Fragmentos (1)

Mastigar bem esta vida é a primeira lição para não morrer engasgado. Os dias passam, viram anos bem rápido e você só vai ter tempo de  aprender uma página de cada vez. Ou aprende, ou a lição vai se repetir lá na frente. Invariavelmente.

Tornei-me homem cedo. Fui pai cedo e não tive outra saída. Dali a meses, minha vida mudou totalmente. Era a hora de pôr a cabeça no lugar, mas o que eu fiz foi ter outro filho. Aos 20 e poucos, tinha mais duas bocas, além da minha, para alimentar. Fazia-me de bom filho para parecer bom pai, mas, na verdade, só conseguia ser bom profissional. A vida boêmia também ia bem e a oficial se desfez.

Mas o pontilhar do meu trajeto era tão frouxo, tão irracional, que eu fui incapaz de voltar à casa um, jogar os dados e jogar do mesmo jeito. A ponto de. Anos depois, lá estava eu: bem acima do peso, mais velho que meu RG mostrava, muito mais boêmio que poderia cogitar. Hoje, faço planos porque planejo morrer cedo e não posso deixar todas essas bocas desamparadas.

Tornei-me também uma mulher sozinha. Arrumei tantas brigas, disse tantos impropérios que só consegui desfazer laços. Hoje vivo em um nó. Pego-me lembrando de quando as netas eram crianças e fazia parte do roteiro que meus filhos as trouxessem para mim. Da dama que fui, seguiu-se um casamento forçado, mais filhos que os dedos de uma mão, mortes, agouros e uma língua ferina. Dela, sobrou pouco de mim. Só me reconheço nas fotos da parede: dali eu ainda posso ser o que queria ter sido. Eu era muito.

(continua, qualquer dia breve.)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Musique-se

A flor e o espinho
Paulinho Moska


Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor...


quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

2011, esse mestre

Fazer balanço do ano é perceber que as coisas mudam rápido, que a vida traça sua cartilha e é capaz de mudar cenários e desfazer certezas. Foi necessário que o ano de 2011 terminasse mesmo, por completo, e que outro chegasse acelerado, para que pudesse ser descrito; uma tentativa de deixa-lo fazer valer até seu último instante. Foram mais de dez dias de balanço, e nada. A única necessidade, por ora, é talvez poder catalogar para o futuro, para não esquecer que as coisas mudam. Sempre.

Dois mil e onze foi um ano que, literalmente, começou mostrando ao que vinha. Em seus primeiros segundos, no dia 1° de janeiro, surgiu para ensinar que há decisões que, por mais difíceis que sejam, precisam ser tomadas, e que há muitos pontos finais nessa vida. Só que os pontos finais requerem maturidade e ela não vem sem dor, sem dúvidas.

Nos seus primeiros segundos, 2011 abriu sua primeira página, deu um tapa na cara e disse: vai, escreve aí pra nunca mais esquecer. E aquela lição foi relembrada por todas as suas 360 e poucas páginas seguintes, sem titubear.

Aquele 2011 também teve algumas doses fortes de decepção; ensinou que o que é veneno pode (e deve) virar antídoto. A mágica está bem aqui: mãos, pés e uma cabeça pra pensar. Mostrou também que há surpresas boas no meio da multidão e que genética não dá predisposição ao amor, não é determinante de caráter e jamais será lei para o afeto.

Mas 2011 veio também para acalentar. Reiterou que sentimentos mudam, que as pessoas se remodelam dentro de você e que isso pode fazer com quê muitas sumam, tal como fumaça. Vapor, aliás, que se esvai sem rastro. Foi um ano que corrigiu a si mesmo, controlou seus caminhos e manipulou uma parte da vida.

Mais que isso, 2011 fechou sua contribuição assinalando que os tempos são outros, principalmente quando lições são definitivamente aprendidas. Amigos da vida renascem, laços são refeitos ou desfeitos. Abriu, então, precedentes para que seu sucessor seja uma época de provas, literalmente: ensinamento aprendido e posto em prática. Ficam votos de notas altas, voos altos.


Notas altas, altos voos