quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Musique-se - Gonzaguinha

Recado

Se me der um beijo, eu gosto
Se me der um tapa, eu brigo
Se me der um grito, não calo
Se mandar calar, mais eu falo

Mas se me der a mão, claro, aperto
Se for franco, direto e aberto
Tô contigo, amigo, e não abro
Vamos ver o diabo de perto

Mas preste bem atenção, seu moço
Não engulo a fruta e o caroço
Minha vida é tutano, é osso
Liberdade virou prisão

Se é amor, deu e recebeu
Se é suor, só o meu e o teu
Verbo "eu" pra mim já morreu
Quem mandava em mim nem nasceu

É viver e aprender
Vá viver e entender, malandro
Vá compreender
Vá tratar de viver

Viver e aprender
A viver e entender, malandro
Vá compreender
Vá tratar de viver

E se tentar me tolher
É igual ao fulano de tal que taí
Se é pra ir, vamos juntos
Se não é, já não to nem aqui



segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Segunda vez no ano


Lá vinha eu, 22h, voltando pra casa depois de um dia econômico de trabalho, quando ouço um estralo na embreagem do carro. Quebrou, desencaixou ou qualquer coisa parecida, mas o fato é que, pela segunda vez no ano, meu companheiro de quatro rodas me deixou na mão. E foi em um momento bem chato, em uma hora complicada, quando eu só queria chegar ao meu destino.

- Faça isso não, Cascão. Tem IPVA mês que vem... - tentei dialogar.

Liguei pro seguro, pra mãe e fiquei desolada esperando o guincho. Fiquei olhando pra ele  que olhava pra mim cabisbaixo, com o pisca-alerta ligado. Parecia pedir desculpas por me deixar na mão, de novo, pela segunda vez no ano. 

- Gastei mais de R$ 1 mil em você este mês, te dei banho, troquei óleo, abasteci com gasolina aditivada, e você me faz isso? - pensava. E ele só piscava, pedindo perdão pela ingrata atitude.

A mãe chegou, reclamou dos meus palavrões, da minha cara revoltada de quem tinha sido abandonada pela segunda vez no ano. O guincho chegou, o amarrou, puxou, e eu fiquei com um nó na garganta. Pensava no prejuízo que tive, se caberia outro no orçamento - junto com o IPVA (e uma multa) - e se eu teria mesmo que substitui-lo. Chegou a hora? Afinal, ninguém quer se desfazer de algo que deixará, invariavelmente, lembranças boas. Mesmo que cause ônus hoje, mesmo que sejam dias de oficina, de rotina mudada; mesmo que venha uma conta alta. 

Ninguém quer abrir mão daquilo que sabe que funciona na estrada, que consome pouco combustível, que é companheiro de horas de trânsito, que é (e foi) testemunha de tanta coisa. Meu Cascão já foi ambulância, a limousine que levou minha irmã para a noite de núpcias, caminhão de mudança e até já ajudou em obra, carregando cimento.

É carro de jornalista: vive cheio de edições velhas da Folha pelo banco traseiro; quebra pela segunda vez no ano e vira assunto na redação. É carro de quem ama música, de quem vive com os amigos, de quem é o amigo da vez. É carro de quem ama carro e por isso tem quase 60 mil quilômetros rodados. Conhece itinerários nas zonas Sul, Norte, Oeste do Recife, em Garanhuns, Natal, Jaboatão, Serrambi, Tamandaré, João Pessoa, nas ladeiras de Olinda e nas ruas do Recife Antigo, onde roda todo dia, incansavelmente, até encontrar uma vaga honesta.

Hoje eu o vi ser guinchado de novo, quebrado pela segunda vez no ano. Fiquei olhando sumir na rua, sendo guiado por alguém que não era eu. E mesmo pensando que terei prejuízo de novo, pela segunda vez no ano, olhei pra o meu Ka KJO8096 e prometi que vou tentar de novo.


PS: Painho, Cascão quebrou de novo!

Musique-se - Otto

Indaguei a alma


Vai, teu corpo, leva de mim
Teu passado todo
Consolo é ficar por aqui
Vai ter a quaresma na Terra
E a guerra não deve existir
Só rima com escravos, não cravos
De bonitas rosas

Já que indaguei a mente e não a alma
Já que indaguei a mente e não a alma
Já que indaguei a mente e não a alma
Que bonita flor


Vai, teu corpo, leva de mim
Teu passado todo
Consolo é ficar por aqui
Vai ter a quaresma na Terra
E a guerra não deve existir
Só rima com escravos, não cravos
De bonitas rosas

Já que indaguei a mente e não a alma
Já que indaguei a mente e não a alma
Já que indaguei a mente e não a alma
Elegi o amor

Primeiro a imaginação, depois eu poderia pôr
Primeiro a imaginação, depois eu poderia pôr
Você faz bem isso e eu te amo
Você faz bem isso e eu te amo
Você faz bem isso e eu te amo
Que bonita flor
Primeiro a imaginação, depois eu poderia pôr

Primeiro a imaginação, depois eu poderia pôr
Você faz bem isso e eu te amo
Você faz bem isso e eu te amo
Você faz bem isso e eu te amo
Que bonita flor
Rima com escravos de bonitas rosas...



quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Construção [parte 9]

Filó, sentado perto da quina da parede, olhava fixamente para o nada. Da poltrona, tentando ler um livro de 860 páginas pela trigésima vez, Marcelo dividia atenção entre a história da eugenia norte-americana (em "A guerra contra os fracos", de Edwin Black) e o gato, que parecia observar o que só ele via. Acendeu um cigarro e a brasa fez o bicho mudar de foco. Agora fitava copiosamente a ponta reluzente, que fumaçava.

- Bicho tosco! - reclamou, alto, sem motivo. Filó não se mexia.

Marcelo abriu uma garrafa de vinho barato, um Quinta do Morgado, que ele havia trazido do supermercado na noite anterior. Bebia sem gosto, folheava a eugenia e tentava se concentrar. Pensava em Ana, nas pautas da semana seguinte, em Sandra e nas contas a pagar. Queria viajar, mas nunca se dava ao direito a uma passagem para o aleatório. Tudo na sua vida era milimetricamente pensado, refletido. Ora, acertado; ora, chato.

Preencher a vida de utilidades vinha sendo o grande objetivo daquele ano novo. Marcelo retomou projetos empoeirados, tentava ler livros encalhados, tirou da lista (e pôs na prática) a intenção de recomeçar uma atividade física. Perdeu peso (na barriga e na consciência) e prometeu a si mesmo que perderia ganharia mais tempo em frente ao espelho, observando a si mesmo. Estava em busca do melhor e mais fiel autorretrato que pudesse fazer. Autoconhecimento - ele decidira - era o caminho certo para livrar-se de si mesmo.

Do dia seguinte, acordou cedo para experimentar outro horário; foi para a academia e aumentou a velocidade da esteira, para experimentar outro pique. Mudou tanto que ficou sem ar, ofegante, com o coração a mil. Era bom para sentir-se vivo em meio àqueles que morrem ao seu lado. Porque Marcelo construía castelos demais, com cada vez mais frequência; mas com bem menos piedade, era capaz de matar. Agora, ele, que se acostumou por toda a vida a se interessar por migalhas, passava a exigir sempre a primeira leva, o melhor corte, o tipo exportação. Sem outras condições.

Fora imposição, ele sabia. Era a vida, mas era uma condição artificial. Ele tentava odiar, porque não podia amar; tropeçava como se ouvisse música, agonizava no meio do passeio náufrago. Pensava em desistir, embora ainda desejasse. Mas quem se importa? Antes de tudo, amou daquela vez como se fosse a última. E se fosse? O problema é que, para ele, havendo poréns, havia também poucos meios termos.




E se fosse?

[continua...]

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Quarta-Feira ingrata e outras coisas sobre o meu Carnaval

"É de fazer chorar quando o dia amanhece
E obriga  frevo a acabar
Oh, Quarta-Feira ingrata
Chega tão depressa
Só pra contrariar..."
Não há humano capaz de resistir à emoção. Corações de pedra sucumbem àquilo que talvez não conheçam, mas reconhecem. Corações se desdobram e palpitam. Cérebros nunca entenderão.

Cérebros são incapazes de somar calor, aperto, desconforto, sol escaldante, cerveja quente, caipirinha mal feita e cheiro de urina em uma equação que resulte em diversão. Diversão mais amor; muito mais. Mas o coração consegue pulsar ao chamado dos clarins. Ao menos um coração pernambucano, humano, arraigado nas ladeiras. Mesmo quem nunca pôs uma fantasia e se propôs a subir com o frevo sente o coração, arregala olhos, acompanha o compasso, mesmo que tímido, sem ritmo.

Não haverão montanhas (nem mesmo as russas) que se igualem nas emoções às ladeiras históricas do Sítio de Olinda - a visão empolgante da doação do Carnaval, da diversão conjunta. O cérebro preferirá outras ruelas; ao coração, somente ladeiras saciarão. Somente ouvir Pitombeiras, Vassourinhas, Elefante, Ceroulas em canção, de bloco, de rua. Corações amantes do frevo, assim como também os são para o samba, para os maracatus. São ruas estreitas que poderiam ser avenidas. Perdoe-me: posso descrever, mas nunca fazer sentir.

"(...)
Vê colombinas azuis a sorrir, laia
Vê, serpentinas a nos reluzir
Vê os confetes do pranto no olhar
Desses palhaços dançando no ar
(...)"

Orgia de som e de cor, amor que nasce, que dura. Aprenda, prenda-se aqui dentro e espere até o próximo Carnaval. Carnavais serão sempre saudosos, todos os anos, sempre pedaços de ilusão tão semelhantes á vida. Ah, meu bem, o que será de Momo sem o teu suor? Eu só quero saber se você vai ficar. Que venha de novo, com luvas, Eu Acho é Pouco, na base do surdo. Porque aqui a gente aprende na escola que o frevo ferve, no sangue. Olinda é sem igual, queiram ou não queiram.

E aprendam, desavisados, que somos feitos de versos difíceis, inaudíveis e impronunciáveis, mas nos contentamos com os monossílabos que se repetem teimosamente. Papapapa... Você pode usar clichês, usar versos para envergonhar poeta, rimando amor com dor, mas venha. Não pague, venha na fé, a pé, contando trocados, dividindo o copo, a fantasia. 

Cérebros, não me peçam razão. Não nos peçam explicações, não me leve a mal.
Ah, saudade tão grande...

"Pode acabar o petróleo/ 
Pode acabar a vergonha/ Pode acabar tudo, enfim/ Mas deixem o frevo pra mim(Capiba)"