terça-feira, 1 de abril de 2014

Lições de despertar (1)

A quebra do longo (muito longo) hiato por aqui vem 15 dias depois que fui atropelada. Mas não foi um atropelamento qualquer (como se isso existisse): estava na calçada, depois de uma água de coco e ostentando quase sete meses de gravidez. Faz 15 dias, então a sabedoria da mente vai ajudando a apagar o estrondo, a imagem do carro preto desgovernado pela calçada e a sensação de empurrão que antecederam o impulso de levantar do chão. Tudo muito rápido, como é a vida.

Eu sou de pouco melodrama, embora seja canceriana. Meu lado jornalístico, sempre vivo, me dá uma objetividade profissional, mas o atropelamento de uma grávida é, por si só, carregado de drama. E de espanto. É com essa cara que as pessoas me olham quando respondo "foi atropelamento" e vêem a minha barriga. Mas meu menino está bem. Incrivelmente bem.

Descobri que seria mãe no dia 12 de outubro de 2013. A notícia, que deixou o pai dele euforicamente feliz, foi um nocaute pra mim. Dali para o dia do acidente foram cinco meses e seis dias, tempo suficiente para a barriga crescer e minha cabeça aceitar que eu teria que me dividir com alguém que, em pouco tempo, eu consideraria mais importante que eu mesma. Foi a primeira lição do acidente: uma mão na boca, segurando o sangue que descia da boca, outra na barriga. Primeiro momento mais doloroso dessa tal "divisão".

Pensei muito em como registraria esse episódio aqui, e decidi que seria sem muitos detalhes, porque eles serão desnecessários com o passar do tempo. Eu até prefiro apagar alguns, para livrar a memória dos lampejos de revolta que oscilam entre o progresso da recuperação e os percalços do tratamento. Porque não é fácil tratar traumas físicos em uma grávida. E eu, que agora só queria me preocupar em montar o quarto de Otto e organizar o chá de fralda, tenho que lidar com o drama de ser uma grávida-acidentada-prestes-a-ser-operada. Ah, porque houve uma fratura na órbita direita, e ela tem tirado meu sossego. Um tal de "opera agora" e "opera depois"... Enfim.

Pouco antes do acidente, eu abri um arquivo no meu computador na redação, para tentar escrever uma desagradável matéria recomendada sobre o magnífico governo Eduardo Campos refletido no progresso do Complexo de Suape. Comecei pensando como não mentir usando a ferramenta do factual ao meu favor, escreveria o óbvio, deixaria pistas nas entrelinhas... foi aí que desci para tomar água de coco e... (não vou escrever, por ora, como foi o acidente, porque ele ainda está sendo investigado).

Hoje eu tirei os pontos da boca. Havia vários, por dentro e por fora. Muitos. Não tive coragem de saber quantos. O olho direito já abre e a dieta pastosa acabou. Eu, que nunca fiquei doente, que sempre me orgulhei da saúde de ferro, aprendi que ferros entortam. Não há motivo para pensar em invencibilidade, em uma força física surreal. Aliás, a maior força é a interna. Foi o que me fez aguentar uma sutura quase interminável com anestesia local. Ok, sem detalhes.

Por ora, eu só consigo pensar no meu olho direito (coitado, que já tem 5 graus de hipermetropia e uns outros de astigmatismo). Mais forte que isso, só a relação com meu Otto já está mais fortalecida que nunca. A vida me chacoalhou. Na verdade, me esbofeteou, machucou feio e me fez parar de reclamar de besteiras, de pensar tanto em futuro, em dinheiro, em apartamento, em troca de carro, e em mais um monte de coisas.

Eu ainda não sei o quanto mudei, mas sei que tem algo diferente. Meu amor por Hesíodo, o colega de redação que virou o pai do meu filho, só aumentou. Eu tenho mesmo muita sorte. Meu laço com essa pessoa aqui dentro que me fez engordar 10 quilos (e perder quatro, depois do acidente) está tão firme que eu não tenho vocabulário para registrar para a posteridade. Mas eu tenho mesmo muita sorte. Otto nem nasceu e já me mostrou que não veio a passeio. O arranhão na barriga ficou nisso. O coração dele bate forte; mais forte que os chutes que ele me dá todos os dias. 

Tenho dois homens incríveis. Eu tenho mesmo muita sorte.