quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Pelos caminhos de Jorge


TATIANA NOTARO
(publicado na Folha de Pernambuco em 6 de agosto de 2016)

Machado de Assis (1839 - 1908) dizia que o escritor, antes de tudo, tem que ser "homem do seu tempo e do seu país". Assim sendo, ninguém cumpriu melhor esse papel no século 20, no Brasil, quanto Jorge Amado. Em sua obra, o traçado da militância comunista e da proximidade com a raiz do feminismo florescem: do primeiro herói negro da literatura brasileira, Antônio Balduíno, às mulheres protagonistas das obras e de suas vidas - Gabriela, Dona Flor, Tereza, Tieta. Há 15 anos, falecia o escritor que fez famosos a Bahia e o Brasil em boa parte do mundo através de suas histórias, contadas em cerca de 40 livros e três mil personagens, em mais de 30 milhões de exemplares vendidos em todo mundo.

Baiano de Itabuna, obá no Candomblé, torcedor do Ypiranga da Bahia, Jorge Amado escreveu seu primeiro romance antes dos 19 anos, "O país do Carnaval" (de 1931), já elogiadíssimo pela crítica. Engajado ao Partido Comunista (inclusive eleito deputado federal pelo PCB em 1945), ele transferiu sua ideologia para os livros. "O herói proletário está nos primeiros romances dele; tem Pedro Bala (de "Capitães de areia"), Balduíno (de "Jubiabá"). São os heróis positivos da literatura socialista, socialismo que Jorge abraça na sua juventude", diz o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Jorge Amado, Eduardo Duarte.

Nos anos de 1950 ocorreu a decepção do escritor com a "utopia marxista". "Quando se desmascaram os crimes do regime comunista, ele abandona o partido ao qual foi fiel tantas décadas, embora tenha me dito, em entrevista, que não chegou a se tornar um anticomunista", lembra Duarte. Esse rompimento ideológico mudou seus ganchos literários - surgem as mulheres: primeiro "Gabriela, cravo e canela", seguida por "Dona Flor e seus dois maridos", "Tieta do Agreste" e "Tereza Batista cansada de Guerra". "Ele negava que a obra dele tivesse duas fases, dizia que era uma só, uma obra do povo. Eu vejo como uma mudança de ênfase, da liberdade social para a liberdade do indivíduo, do corpo. Aí entra a mulher, a nova mulher", completa o estudioso.

As abordagens de Amado e a liberdade que concedida às suas personagens não poderiam ser mais atuais. "Um novo paradigma da leitura da obra dele tem que passar pela questão de gênero, no que diz respeito à mulher, e de etnicidade, nas questões da cor do nosso povo, do negro no Brasil", continua Eduardo Duarte. No caso de "Dona Flor" isso fica evidente e, ele diz, não é mais possível ver a obra "apenas como comédia, história de amor, traição e boemia", mas como a história da mulher que se dá ao direito da escolha. No imaginário brasileiro, dependendo de sua idade, Flor pode ter o rosto de Sonia Braga (do filme de Bruno Barreto, de 1976) ou de Giulia Gam (da minissérie da Globo, de 1998), atrizes de duas das muitas adaptações que as obras amadianas receberam. "Jorge sempre foi muito crítico com relação às adaptações, não gostava de nenhuma. Eu acho o filme de Bruno Barreto 300 vezes melhor que a série, até porque Giulia não chega aos pés de Dona Flor", diz Duarte.

Na opinião do professor, a forma como as adaptações são conduzidas afastam os leitores do livro, uma tragédia para um País onde se lê tão pouco. "Jorge Amado caminha para o esquecimento porque as novas gerações também leem muito pouco, existe uma ojeriza ao livro no Brasil. É uma falha história na formação brasileira, ninguém passa séculos vivendo a escravidão impunemente", diz Duarte, justificando que a Companhia das Letras relançou todos os livros dele e nunca nenhum deles entrou na lista dos mais vendidos.

Vida
Jorge Amado foi, e é, um escritor mundialmente reconhecido. Aos 25 anos, já estava traduzido para vários idiomas como francês e russo. Quando chegou a Paris, aos 36, exilado, foi manchete de jornal, que anunciava que a França iria acolhê-lo. "Em 1988, perguntei quantos livros haviam sido vendidos na então União Soviética e ele disse que eram cerca de 10 milhões; 500 mil da última edição de 'Gabriela, cravo e canela'", diz Eduardo Duarte. "Ele se sentia muito reconhecido, dizia sempre: 'a vida me deu muito mais do que eu merecia'".

SAIBA MAIS
Edições - Segundo a Companhia das Letras, que atualmente edita a obra de Jorge Amado, é "Capitães de areia" o livro mais vendido do autor atualmente, chegando a mais de 900 mil exemplares. A editora vai reimprimir "Terras do sem fim" no próximo mês.

Candomblé - Jorge Amado ocupou uma das 12 cadeiras do conselho dos obás de Xangô, orixá a que o terreiro Axé Opô Afonjá é consagrado. Ele dizia ser um obá antes mesmo de ser um literato. Há um Exu na porta da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador.

Feminismo - Exilado em Paris, Jorge Amado foi recebido pelo casal de amigos Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Era 1948, ano de publicação de "Segundo sexo", a bíblia do feminismo mundial.

Nobel - Para José Saramago, segundo disse recentemente sua esposa, Pilar del Rio, o primeiro Nobel de Literatura para um escritor de língua portuguesa deveria ter sido para Jorge Amado. "Os dois fizeram um pacto: compartilhar o prêmio. O que acontece é que quando deram o prêmio a José, Jorge Amado estava muito mal e não pôde ir".