terça-feira, 3 de setembro de 2013

Telefone [parte 10]

Meses de hiato. Marcelo era outro, mas continuava com suas peculiaridades básicas; aquelas de pensar demais, fazer de menos, alimentar a frustração, o embaraço, a autopiedade. A vida mudara muito nos últimos meses, é verdade; conseguia fazer planos mais otimistas, mas a luta para enxergar o fim da linha - no bom sentido, de chegada - era sempre vã.

Filó continuava saudável, soltando pêlos por toda casa. Marcelo cansou dele, ligou para Sandra, pediu que buscasse o gato, que o levasse de volta, porque ele alimentava sua melancolia sem piedade.

- Ele foi um presente. Você vai me devolver um presente, Mau? - disse, meio indignada, meio doce, totalmente indecifrável.
- Sandra, eu odeio esse gato! - emendou Marcelo com a voz já alterada.

E lembrou que sempre gostou de cães, lia sobre raças, falava de uma frustração infantil... mas a ex deu-lhe o gato preto de olhos verdes e vivos, num cesto, com uma fita xadrez no pescoço. No primeiro segundo, Marcelo já o odiou. Sandra não foi complacente.

- Posso fazer nada. João não gosta de gato - completou, seca. Agora sim, seca!

Marcelo ficou em silêncio por um minuto. Precisava perguntar, não tinha coragem, mas nem sabia se ainda se importava com a confirmação do que temia.

- Quem é João, Sandra?

Ouviu um silêncio do outro lado. Sandra, psicóloga formada, vivida, experiente, sabia que o ex-"namorido" era, no fundo e no raso, um homem possessivo. Sentou-se no sofá, pôs uma almofada no colo, apoiou os cotovelos e respirou fundo:

- Meu novo atual - disse Sandra, num segundo. Fechou os olhos, esperou a pior reação.

Marcelo esperou sentir o mal estar que começa no estômago, sobe pelo corpo e dá um formigamento na cabeça, principalmente na nuca. Para ele, era o sintoma do brio ferido, do ego atingido, do ciúme. Mas nada. Magicamente, percebeu que Sandra não fazia mais sentido. Pensou em como o sentir das coisas muda, como o sentimento morre. Pensou rápido no que responder, controlou o tom da voz para ser natural, o mais normal possível. Era o que sentia.

- Bem, então não vejo outro destino senão a adoção. Se você tiver outra solução, ligue. Um beijo.

Esperou a despedida e desligou. Esperou de novo, o mal estar não veio. "Estou curado".

Foi a primeira vez em uma longa temporada pantanosa que Marcelo se sentiu livre. Ter enterrado Sandra o fez aliviar. Deitou na rede, esticou bem a coluna e procurou Filó em cima do puff de couro. Ele respirava fundo, cochilando, mas dessa vez não encheu o peito de dono de melancolia. Marcelo começava a ser livre de novo.






[continua...]