sexta-feira, 16 de setembro de 2011

AD, 20 de outubro de 2050

 
Estava pensando nas escolhas que fiz na vida. Clichê. Inevitável a todo vivo. É que do alto (altíssimo) dos meus quase 70 anos, vendo o fim impassível que se aproxima, temo por só ter a lamentar as más escolhas que fiz. Podia hoje estar bem de aposentadoria, gozando de uma vida confortável com rendimentos justos, com amor à boca, mas optei por outro caminho e a história foi bem diferente. O que penei pela vida toda - todos os percalços que, sei, você acompanhou de perto - serviu para chegar até aqui e assinalar a conclusão: fiz escolhas erradas. Muitas, várias. Desculpe não ter ouvido tudo o que você me disse, perdoe por não ter visto o que você apontava, por não ter aberto pra você entrar. Não. Lamento. Perdoe-me.

Aí hoje eu olho para o lado direito da cama e não vejo ninguém. E nem é isso que dói, sabe? Acho que hoje esse vácuo tinha mesmo que estar vazio, já que a antiga personagem não fazia mais sentido. E falando em sentidos, eu penso em sentimentos, no sentido das coisas que passam e você nem sente. Era você, há alguns anos, ali, ao meu lado, como uma doce e insistente ironia do destino. Se tivesse dado mais... nem sei. E eu nem aí pra você, dei de ombros para a sua presença indispensável que ocupava muito menos espaço que merecia. Hoje dói. Mas como o tempo passa, foi ficando distante, invisível até parecer uma cabeça de alfinete perdida no espaço. Aí às vezes eu deliro: ainda podereis querer-me como já quisestes? Não creio. Já não caibo em ti. Fosses tão longe e eu fiquei para trás.

''Esqueça
As horas nunca andam para trás
Todo dia é dia de aprender um pouco
Do muito que a vida traz''

Mas onde estava toda essa noção até então? Porra. Terá sido chamada simplesmente do linear e indecifrável fim. Sim, porque a gente lida com o tal fim, com prazos, com os "the end"s dos filmes e nem assim isso cabe na mente. A cabeça não absorve essa salobra ideia de finitude, embora nos persiga, embora persista em dizer que "sim, eu chego e você não vai". Você foi. Morreu, embora me pareça tão bem, e viva.


E o que faço aqui, agora, nesse fel do inferno? Que predicado dar ao amargo que dá na boca daqueles que se arrependem? Eu digo que fui 90% burro. Sabe? Eu te tive, quis te sentir tantas vezes que achei que chegaria, mas fui adiando. Eu ainda lembro quando te vi com aquele terceiro, sinto ainda a pontada do perdedor, mas ainda ali nem tive força de reação. Acho que não eras para ser minha. Mas se não eras... então, é por isso que ainda te sinto? Não responda.

Passarei os anos que me restam sem saber como seria ter dado aceite ao teu olhar que tanto suplicou. Eu sei que desejavas aquela história comum de dormir e acordar juntos, mas sei que também pretendias fazer dos meus dias dias melhores. Comova-se. Minha burrice acabou livrando-te da minha companhia: se houvesse descoberto antes, você nunca mais ia se livrar de mim.

E me desculpe, se possível for, pelas erudições, pelas futilidades, pelo desapego e pelo amor.
Me perdoe por você ter sempre razão.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Sobre gênios, sobre genialidades

Eu queria ser gênio. Quando era bem criança e tirava nota baixa em ditados ou cópias no colégio, por pura preguiça (óbvio), painho me colocava de castigo. Impunha-me um livro de Monteiro Lobato, um exemplar do longo Sítio do Pica-pau Amarelo, e me obrigava a ler e copiar um capítulo inteiro. Era um suplício.

Mas lembro bem de um dia em que copiava umas falas de Emília, que dizia ao Visconde de Sabugosa que iria escrever suas memórias, e ponderei ser uma ideia boa. Eu achava Emília genial. Entendia nada que ela filosofava e, por isso mesmo, achava que deveria ser tão inteligente que eu, recém alfabetizada, sequer tinha condições de entender. Aí fiquei naquela de aprender a escrever bem, cada vez melhor, e por aí seguir o caminho até a genialidade.

Até achei que seria possível alcançar tal patamar, até começar a ler Machado, Saramago, Clarice; até ouvir Bach, até analisar Chico. Percebi que era melhor procurar ser simplesmente boa, fazer o que gosto, que o resto seria mera consequência.

Hoje, eu ainda gosto de ler e, principalmente, ouvir o que toque, o que beire ou entre na genialidade. Mas acredito totalmente que a perfeição (ou algo próximo a ela) seja somente o resultado de muito esforço, disciplina, talento, dedicação... algo que toque alguém.

Vai, viajei... assiste aí pra entender.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Cascavilhando arquivos


Às vezes leio um texto legal e guardo na caixa de e-mail pra servir de inspiração em algum momento de vazio. Eis que surge algo interessante para ocupar a lacuna dessa fase da vida onde hoje vira ontem tão rápido que chega a ser assustador...



Desculpe, morri
(Marcelo Rubens Paiva, publicado no jornal O Estado de S.Paulo, em 29/10/2005)

- "Boa-noite, é... Marcelo?"
- "Quem é?"
- "É você?"
- "Quem está falando?"
- "Puxa, que bom, eu precisava tanto falar com você, não imagina o trabalhão que deu pra descolar o seu... "
- "Quer falar com quem?"
- "Com você mesmo, Cariri."
- "Cariri?"
- "Não era o teu apelido em Santos?"
- "Como você sabe?"
- "Pesquisei. Apelido louco. Por que te deram esse apelido?"
- "Olha, o que você quer?"
- "Sou estudante de jornalismo e estou fazendo um trabalho."
- "Como você descolou o meu telefone?"
- "Desculpe, Cariri. A pessoa que me deu pediu para não ser identificada. Você é uma figurinha difícil de achar, hein? Marcelão, Marcelão... Como vão as coisas?"
- "Indo."
- "O seu Corinthians, hein?"
- "Meu e de muito gente."
- "E a Ana?"
- "Ana?"
- "A do livro."
- "Que livro?"
- "Como que livro ? O seu livro!"
- "Qual deles?"
- "Tem mais que um?"
- "Tem alguns."
- "Caramba! Estou falando do primeiro. Tinha a Ana, que namorava você na época da ditadura."
- "Ah. Não se chamava Ana. Nunca mais vi."
- "Puxa, mas vocês eram tão..."
- "Ligados? Mas isso faz tempo, era ditadura ainda. Éramos adolescentes."
- "E a galera toda?"
- "Qual?"
- "A do livro?"
- "Sei lá. Faz 25 anos isso."
- "A Bianca, a Gorda?"
- "Cara, estes nomes são inventados. Cada um foi para o seu lado. O mundo gira, a caravana passa."
- "Que caravana?"
- "Deixa pra lá."
- "Pô, você é doidão, mesmo. Quanto tempo você levou pra escrever?"
- "O quê?"
- "Como o quê? O Feliz Ano Passado?"
- "Ah... Levei um ano."
- "Pô, e você ficou uma fera com aquela enfermeira. Meu, rolei de rir naquela parte. Marcelão, que figura. A gente tem que se conhecer, cara, temos muitas coisas em comum."
- "Sério?"
- "Com certeza, pô, posso falar? Este livro marcou uma época, tá ligado? Tipo assim, marcou uma geração, certo?"
- "Ouvi dizer."
- "Então, como vão as coisas?"
- "Indo."
- "Pô, conta mais."
- "É que estou jantando."
- "Ah... Olha só. Eu preciso te entrevistar, cara. Pro meu trabalho de TCC, tá ligado? Trabalho de Conclusão de Curso."
- "Tô ligado."
- "Aí, vamos marcar?"
- "Cara, não fica chateado, mas é a quinta pessoa que liga nesta semana pedindo, e não vai dar. Fim de ano, é sempre assim, um monte de estudantes liga, e tenho minha rotina, eu trabalho muito, não é pessoal, vê se me entende."
- "Ah, não vai dizer que vai regular?"
- "Cara, é muita gente, não dá pra atender todos..."
- "São só umas 25 perguntinhas."
- "Só?"
- "Sobre a sua carreira, seus livros, as influências, a ditadura, o seu pai, tortura, desaparecidos, esses lances, a condição dos deficientes, os jovens no mundo de hoje, a diferença entre os jovens da sua época e os de agora, fala do Renato Russo, você era amigo dele, não era? Será só imaginação, me amarro, cara, será que vamos conseguir vencer, será que é tudo isso em vão, você conheceu o Cazuza? Como era, tipo assim, o ambiente naquela época das passeatas dos estudantes? Nós vimos o filme do Cazuza e debatemos na escola a aids e os anos 80, cara, aí, você fala da importância dos livros para os jovens, de como fazer os jovens lerem mais, compara a geração cara-pintada com a da antiglobalização, Fórum Social, falta bandeiras, certo? O Protocolo de Kioto tá aí! Viu os furacões? Os americanos têm que assinar, tá ligado? Pô, deu na seca aqui da Amazônia. Posso mandar as perguntas por e-mail, a gente fala dessa crise aí do PT, você tá acompanhando, não tá? Você ainda curte política? Mó decepção..."
- "Cara, não vai dar."
- "Pô, Cariri, você me pareceu um cara legal pelos seus livros."
- "Olha, quando eu estudava, fiz um trabalho enorme sobre lógica aristotélica. Aí, liguei pra Grécia, pra falar com o Aristóteles? Não. Tive que me virar."
- "Que que tem a ver, cara?! Tu é doidão mesmo, aí, ó! Tu fala grego, maluco?!"
- "Fiz um trabalho sobre Kafka na escola. Nunca pensei em ligar pra casa dele em Praga."
- "Por que não?"
- "Porque ele morreu em 1924! O Machado de Assis também morreu. Ninguém na escola ligaria pra casa dele na hora do almoço ou jantar pra perguntar se Capitu era fiel ou não!"
- "Calma aí, meu. Nem tinha telefone naquela época."
- "Olha, vai à sua biblioteca ou use a internet. Não precisa entrevistar o autor para fazer trabalhos. Descobre você."
- "Quer dizer que depois da fama tu ficou convencido. Desculpe aí, cara, foi mal. Nunca mais leio um livro seu. Aí, ó, sabe quem morreu pra você? Eu. Tá se achando, Cariri?!"


Minha mãe, na adolescência, de uniforme do Sion, costumava esbarrar com alguns modernistas, especialmente Oswald de Andrade, na Leiteria Americana, café amargamente falido em frente ao Teatro Municipal. Ela me contou, quando me viu lendo Memórias Sentimentais de João Miramar. Perguntei se ela não falou com ele, não pediu autógrafo, não perguntou coisas. Ela disse que jamais atrapalharia a refeição de um pensador. Sua educação me privou de herdar um autógrafo ilustre.

Madrugada, Leblon, Rio de Janeiro. Um fã vê o arredio escritor Rubem Fonseca, de Feliz Ano Novo, passar com um boné enterrado na cabeça, em uma de suas caminhadas "anônimas". Aproxima-se e pergunta se ele é Rubem Fonseca. O escritor responde: "Depende."

O dramaturgo e diretor de redação da Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho, lembra um episódio que ocorreu em 1977 na USP, quando ele era estudante ainda. Durante um congresso da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), venceu a timidez e abordou o autor de Dois Perdidos Numa Noite Suja, perguntando: "Plínio Marcos?" Ele respondeu: "O tempo todo." O próprio Otavio costuma dar uma reposta inusitada, quando perguntamos "Como vai?" Ele diz: "Sobrevivendo".

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O vento, o tempo em movimento


Para registrar o retorno, a retomada, a volta da vida por aqui.
E pra dizer que às vezes a brisa no rosto é a única coisa que a gente precisa pra lembrar que está vivo.