A realidade não é para os fracos. Nós, os fracos, quanto postos diante dos fatos, trememos, tergiversamos, fingimos que a conversa não é conosco. Na década de 40, quando já insultava nos palcos sudestinos, Nelson Rodrigues fazia das infâmias públicas pedras que eram atiradas contra ele mesmo - porque a maioria era capaz de jurar de joelhos, com as palmas das mãos juntas, que jamais viu ou pensou algo semelhante ao que suas tramas escancaravam. Eram ofensas. Mas infâmias alardeadas geram reações que, aposte, têm maioria de concordância; o que sobra fica de aceite com aquele riso cínico abafado de quem não tem lá muita coragem de assumir.
Na última apresentação do último dia do Janeiro de Grandes Espetáculos, a história de "A mulher sem pecado" pareceu óbvia. E de tão óbvia, uma surpresa. A ótima montagem da Cia de Teatro Arlecchino, de Minas Gerais, é apresentada em cima de um cenário simples: porta, escada e o arcabouço da cena por onde atores entram e saem, se enfrentam, mas não se olham. Há insultos, delírios e cismas que se põem como verdades. Tudo bem Nelson.
Tudo verdade, inclusive as risadas e sussurros da plateia a cada deixa rodrigueana: "toda bela mulher deveria ser uma amante lésbica de si mesma". E não é? Aliás, se a verdade do palco fosse simplesmente essa, Olegário (interpretado por Paulo Rezende) estaria coberto de razão ao apontar Lídia (de Ana Luiza Amparado) como uma adúltera dissimulada. Segunda mulher do (falso) paralítico, Lídia lida com sombras, com dúvidas, acusações. Olhos a cercam por todos os lados, inclusive os do público, porque fica uma dúvida cruel se ela está ofendida como uma ré inocente ou assustada com a verdade. Por fim, está pouco claro se havia qualquer razão em Olegário, mesmo que ele mesmo concretasse que há tipos de mulheres que têm obrigação de ser infiéis. E a mulher de um paralítico, como a sua, seria uma dessas.
Nelson, atesta a história mal contada, era tarado, pornográfico, deturpador dos costumes, denigria a imagem da família e, se assim for, deve estar sendo (sub)utilizado até hoje como norte das produções televisivas. Tempero usual, como sal, das novelas. Mas não vamos adentrar discussões sobre o que se torna (despida) a célula da sociedade nas mãos de Nelson Rodrigues, porque se este é o ano do seu centenário de nascimento, as cansadas análises ficarão ainda mais esgotadas. Vamos nos poupar.
A questão aqui é que, ao perceber Nelson, é mais direto sentir que a vida é bem assim, cheia de dissimulações, de contradições. Que sua podridão, aquela que cai na sua cabeça em algum momento (lembra?), quando você descobriu que as coisas não eram "bem assim", é inerente e faz parte da fórmula. Se por seus traçados não há muitas saídas além da tragicômica, então por onde saem as surpresas, as interjeições e os incômodos que você sente? Onde está o novo na receita que deixava (e deixa) plateias incomodadas e pudicas como estivesse diante do novo inominável?
O problema é que Nelson virou rótulo. Já era, em seu tempo, mas hoje é o narrador dominical de "A vida como ela é..." (assim mesmo, reticente, como se esperasse complemento), que consegue ser muito mais amoral que qualquer reality ou dança modista. Mas quem olha pro umbigo no espelho e é romântico o suficiente para trocar as reticências de Nelson por um leve e assumido ponto (.)? Dizendo de outro jeito, a realidade é para quem aguenta sua força. Mas a moral é leve.
Leve, leve |