Brasileiros têm até amanhã para fazer a declaração do Imposto de Renda (IR)...
- Não! Tá péssimo! - Marcelo resmungava logo pela manhã, batendo mais uma de suas matérias corriqueiras. Imagine que, do alto de sua maturidade profissional, ele já não sentia tesão pela coisa. Refiro-me ao Jornalismo: Marcelo tentava insistentemente manter a acesa a chama daquela relação. Alguma coisa tinha que funcionar. Sandra já rachara.
Marcelo mudou-se do apartamento de Sandra, na Encruzilhada, para um alugado, de pouco menos de 50 m², no centro da cidade. Procurava um imóvel que tivesse varanda, queria ter espaço para pendurar a samambaia e uma porta para fechar quando não quisesse assistir aos banhos de Filó.
- Preciso me livrar desse gato - pensou, olhando o bicho ronronar num sono de fim de tarde. Via Filó dormindo e sua angústia aumentava. A cena ganhava uma trilha sonora mental automática, na cadência de Dorival Caymmi:
Um pescadô tem dois amô/
Um bem na terra, um bem no mar...
Bateu as mãos nos braços da poltrona e saiu. Precisava respirar. Entrou no shopping, conferiu a programação do cinema. Nada agradou. Entrou nas Lojas Americanas e perdeu quinze minutos escolhendo filmes. Comprou dois, duas garrafas de Stella Artois e Doritos. Olhou as informações do pacote, mania que aprendeu com Sandra, antes do racha.
- Aquela surtada... - resmungou baixo, lembrando o hábito da ex-namorada. Sandra vivia de dieta e dizia que comia mal. Marcelo traduzia que Sandra se sentia mal comida. Na mesma hora, lembrou de Chico Buarque:
...tanto homens me amaram/Bem mais e melhor que você...
Marcelo tinha surtos esquizofrênicos de ciúmes. Duravam cinco minutos e uma vontade assassina. E passavam. Era um homem controlado, achavam os terceiros.
Pagou as compras, voltou pra casa. Filó continuava no mesmo lugar. Marcelo parou para observar se o bicho respirava. Torcia encontra-lo morto. Acordou do transe maléfico, colocou as sacolas em cima do balcão da cozinha. Parou para ler as sinopses:
- Se assistir isso agora, não acordo vivo segunda.
Passou pela sala rápido, sem olhar para Filó. Passou para o quarto.
- Mau, vamos ver um filme na Fundação. De lá, saímos para comer pizza e você me conta o que houve - propôs uma amiga ao telefone.
Sem muita saída para livrar-se daquele marasmo vespertino de domingo, Marcelo aceitou o convite. Maíra era amiga da escola, conhecia-o desde os 15 anos e já fora ombros muitas vezes até ali - mas não seria mais uma. Maurício não tinha a menor vontade de chorar.
Tomou uma ducha, colocou uma roupa clara, sandálias, e sentiu-se leve. Passou pela sala e fitou Filó, que se espreguiçava da soneca. Censurou o pensamento e saiu sem chavear a porta. Sentou no carro, abriu a disqueteira e foi buscar Maíra em casa.
- Tais ouvindo essa merda de novo? - ela gritou, entrando no carro, puxando-o pela ponta da orelha direita e dando um beijo no rosto. Fazia sempre isso.
- Eu gosto de Oswaldo, porra. Muda aí...
Maíra diminuiu o volume e deixou Oswaldo continuar.
- É um filme russo, em russo, com legendas em inglês. Um russo que vive em depressão em um apartamento no centro de Moscou. - disse Maíra, descrevendo o enredo de logo mais e limpando o rímel do canto do olho. Marcelo achou uma ironia de mau gosto.
Compraram um saco de pães de queijo e dois copos de mate. O filme começa com um gato olhando-se fixamente no espelho. Marcelo virou para Maíra, talvez para protestar. Ela olhava para a tela, mascando um pedaço de pão de queijo. Ele tirou o iPhone do bolso, colocou os fones nas orelhas, escondidos debaixo dos cachos do cabelo, e ligou Oswaldo.
- Puta que pariu..
Duas horas e 56 minutos e meia eternidade depois, o filme termina. Na última cena em que Marcelo estava de olhos abertos, o mesmo gato lambia a pata direita em primeiro plano. Atrás, uma foto de uma velha. Marcelo fechou os olhos e não abriu mais.
- Dormisse o filme todo! - reclamou Maíra, descendo as escadas.
- Nada disso. Estava refletindo sobre solidão...
- Viu que sensibilidade? Achei a luz do filme de uma melancolia transcendental...
- Onde vamos comer? - perguntou Marcelo, cortando o momento pseudocult da amiga.
- Vamos no Alfredo!
Alfredo era uma pizzaria pé de chinelo no centro da cidade. Comiam lá desde a época da escola. Marcelo sentou meio impaciente. Maíra pediu o de sempre: meia havaiana, meia lombo canadense. E coca-cola.
- Diz. Por que se separaram? - começou a moça, com os cotovelos apoiados na mesa.
Marcelo não acreditou na pergunta. Olhou firme para as sardas que pingavam pelo rosto de Maíra. Vislumbou um liga-pontos.
- Ah, fala sério. Não dava mais... - tergiversou.
Ela, interrompendo: - Era um lar, Mau...
- Eram duas pessoas que não se suportavam, não se falavam, não se comiam e criavam um gato. Tá mais pra campo de concentração - disse, num passo acelerado. Maíra conhecia aquele tom e mudou de rumo.
- E o apartamento?
- É dela...
- E os móveis?
- São dela...
- E os discos?
- De vovô? Ficaram comigo. Ela detestava...
- E Filó?
Marcelo censurou a vontade de matar Maíra também.
- Tá lá em casa - pensou, ouvindo Dorival Caymmi.
(...) Continua.
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