Passava do meio dia. No Recife, o asfalto estalava de calor. Com um Free apagado na boca, Marcelo abanava o tempo com o bloco de apurações. A caneta, presa no crachá que lhe pendia do pescoço, fazia pequenos riscos na camisa de malha barata. Desenhava, distraída, enquanto ele procurava o isqueiro. Olhou para os lados e viu Ana, colega de outro jornal, que também levava chá de cadeira do carro, acendendo um Malboro Light.
- Ana, fogo?
- Ana, fogo?
Ela lhe estende um Zippo prateado. Ele traga e devolve.
- Pauta chata... - ele fala, meio tom, querendo iniciar um passatempo sincrônico.
Ana olha pra ele de rabo de olho, sem virar a cabeça.
- É...
Marcelo sabia da fama da colega. Palavras muitas, só no papel, escritas por ela ou por um "tal" C.F.Abreu. Ana era meio melancólica, beleza média, óculos e tinha um carro semi-novo ainda cheio de prestações. Aquele cigarro era o primeiro em cinco dias, quebrando mais uma tentativa frustrada de parar.
- Viu o resultado do Oscar? O mudo ganhou...
- Não - interrompe a moça, cortando a conversa e entrando no carro do jornal. Deu um tchau até simpático e foi embora.
Aliás, Marcelo tinha a sensação de estar sempre esperando pelo que não chegava. Mas o carro chegou. Acenou para o motorista, tragou, pisou e entrou no carro.
- Porra, Raimundo! Quarenta minutos...
- Bora, viado, deixa de reclamar!
Marcelo sabia que as coisas não iam bem. Naquela semana, Sandra resolveu cobrar-lhe compromisso mais sério, exigiu burocracias que ele não tinha dinheiro nem saco para dar.
- Um anel, Marcelo! Compromisso... financiamento... data... vencimento... material escolar...
Sandra saiu falando de suas insatisfações, mas Marcelo traduzia tudo como uma lista de cobranças ad aeternum.
- Ou vai ou racha! - ele traduziu, ao fim do falatório de Sandra - Racho!
Rachada a relação, ele saiu de casa carregando uma caixa de vinis que foram de seu avô, a samambaia que pendia na varanda, umas revistas e Filó, o gato persa preto. Este último foi um favor. Além de alérgico, o bicho deixava Marcelo entediado. Aos domingos, enquanto ela lixava as unhas na varanda, debaixo da samambaia, e fofocava com Joana assuntos melancólicos, Marcelo ficava paralisado e enojado de ver o gato em seu ritual de limpeza. Filó lambia a pata esquerda e passava na cabeça. Marcelo tinha nojo dele.
No jornal, Marcelo dividia bancada com Eduardo. O colega boa praça era melhor repórter que ele, já tinha traçado metade das mulheres da redação e ainda tinha os dentes brancos, numa simetria perfeita. Quando Eduardo falava, Marcelo prendia atenção nos caninos, sisos e molares, tentava encontrar alguma mancha. Mas nada havia de depreciável em Eduardo.
(...) Continua.
Nenhum comentário:
Postar um comentário