segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Mataram Alcides. E agora?

Eu ainda não tenho filhos. O mais próximo disso é a minha irmã mais nova, de sete anos. Desde que Mariana nasceu, comecei a atentar mais para a responsabilidade de pôr alguém tão inocente e frágil em um mundo como este. Para ser exata, em uma cidade como a minha, um pedaço pequeno de Brasil, impecavelmente igual ao resto, cheia de alegria, de belezas, de gente boa e – na mesma proporção – cheia de injustiças.

Desde criança, ouvi que faço parte de um país injusto – e conformado. Daquela época, lembro do primeiro choque, quando uma menina de cinco anos foi seqüestrada e queimada. “Assim, do nada?” - pensei. É... do nada, sem explicações. Eu só tinha 9 anos e essa foi só a primeira da (minha) lista. Aqui, se aprende cedo que o mundo não está para brincadeiras, que as pessoas são más e que a desconfiança é uma questão de sobrevivência. Violência é uma coisa corriqueira, diária, presente em qualquer esquina ou na porta de casa.

No dia em que os jornais noticiaram a morte de Alcides, eu me lembrei da música de Nando Reis, Relicário: “o que está acontecendo?/ o mundo está ao contrário e ninguém reparou?”. Você pode até me lembrar que, todos os dias, alguém morre por os mais banais motivos imagináveis. Concordo. Precisamos concordar. Eu só me pergunto onde vamos parar com isso. Pergunta difícil...

Dona Maria Luiza vivia do trabalho de puxar carroça e criou três filhos com todo o esforço e dedicação que a missão exige. Alcides enchia o peito da mãe de orgulho; passou em primeiro lugar da rede pública no vestibular da Federal de Pernambuco em 2007 e estava prestes a se tornar um Biomédico. Um dia desses, mataram o menino, de apenas 22 anos. Assim, do nada. Era sábado, 6 de fevereiro, por volta da 1h da manhã, quando Alcides levou dois tiros na cabeça (o terceiro, impedido por sua mãe, que segurou o assassino), dentro de casa, depois que os bandidos interromperam seus estudos. Os dois tiros mataram Alcides e acabaram com o esforço da vida de Dona Maria Luiza. Se tiver como piorar, mataram por engano.

Eu me indignei, mas a mísera indignação de nada adianta. Você sente agora, mas ela passa. Também não adianta esbravejar, gritar – isso é o mínimo. Prender os assassinos é o mínimo. Estamos no limite do aceitável, no extremo, e parece que ninguém reparou. E Alcides? E Dona Maria Luiza? E o que faremos nós com nossos filhos, irmãos. O que faremos?

Parei e recomecei esse texto várias vezes hoje. Procurei respostas para dar àqueles que lêem, procurando cumprir a função de jornalista. Hoje, com 15 dias do enterro de Alcides - hoje, com Pernambuco contabilizando a morte de 552 pessoas apenas destes 52 dias de 2010, eu não tenho o que dizer, não tenho explicações. Não há motivos para clamar misericórdia divina, por que dizem que ele nos deu livre arbítrio – a infeliz ideia de nos dar o rumo da própria vida. Parece tão inútil quanto pedir justiça, tão inútil quanto cobrar medidas do poder público.

Vamos nos acostumando a viver de migalhas, conformando com números levemente menores de violência, com um pouco menos mortes a cada dia. Embora pobre e negro, como tantos que morrem todo dia no Recife, Alcides toca porque é capaz de fazer pensar, porque traz o pesar de uma boa lição que não teve a chance de chegar ao destino que lhe cabia. Então, você me pergunta: não há nada nessa história para servir de consolo? Não sei.

O jornalista João Valadares escreveu (clique aqui pra ler o texto na íntegra):
Morador da Vila Santa Luzia, na Torre, filho de uma ex-carroceira, tirou fino da miséria e passou no vestibular de Biomedicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Passou bem. Foi primeiro lugar entre os alunos das escolas públicas. Não fazia outra coisa. Só estudava e frequentava o grupo jovem da Igreja da Torre. Deixou a mãe louca de felicidade. E a Vila Santa Luzia também. As mães de lá ganharam um rosto para mostrar aos filhos. "Tá vendo aquele ali. Passou no vestibular."

E como fica o exemplo para os outros jovens que poderiam superar a miséria financeira e escolar? Alcides morreu. E agora?

A irmã dele também foi aprovada na Federal de Pernambuco, neste último vestibular. Serve de consolo? Ao contrário do guri da música de Chico Buarque, os filhos de Dona Maria Luiza chegaram lá – de verdade.

Alexandre Gondin/JC Imagens
Dona Maria Luiza, no enterro de Alcides - "...e na sua meninice/ Ele um dia me disse que chegava lá"

4 comentários:

Juliana Troxler disse...

Tatiana, nem sei o que dizer...
Triste, revoltante e confusa essa nossa realidade.

Anônimo disse...

A morte dele foi um soco na cara, e a imagem da mãe foi uma surra completa.
É desses acontecimentos que marcam, que ficam no consciente ou no mínimo no inconsciente das pessoas de bem.
Essa desgraça pode gerar pequenas e grandes coisas boas.
Que assim seja.

PS: Muito bacana a maneira como vc inseriu a música do Chico.

José Henrique

Gilka Nunes disse...

Indignaçao e o meu sentimento. Nunca concluo uma selvageria dessa como mais um crime, mas maquino como estirpar esses mau-caraters de nossa vida. Apesar de ser contra a pena de morte, creio que deveriamos faze-los de raçao para os tubaroes famintos. Nunca, jamais farao falta a nossa sociedade. Lixo poder sao esses falsos herois do submundo do crime. Alcides, que Deus fertilize na vida com pessoas como vc e sua familia. Gilka Nunes- Recife-Brasil

Anônimo disse...

Gilka, o mais foda é que quem matou o Alcides tb é vítima.
Claro que se pode fazer escolhas, a vida é feita disso.
Mas...
Pena de morte boa mesmo seria pra rapaziada do colarinho branco.
Esses sim, com suas ganância e indiferença, são responsáveis direto pela situação de gente como Alcides e seu algoz.
Fica-se com ódio de pobres diabos, enquanto os verdadeiros filhos da puta são soltos pelos Gilmar Mendes da vida.
O jogo tá armado assim.

José Henrique