domingo, 11 de julho de 2010

As linhas sem limites de "Dionisíacas"

Há uma linha tênue entre os sentidos despertados pela arte; mais ainda pela cênica, a mais vivaz de todas. O palco é o espaço ideal para os mais limítrofes sentimentos. Em cena, amor, desejo, sexo, pederastia, expectativa, medo... tudo se mistura em meio à teatralidade - caberia ao expectador o papel de decidir o que sentir. Se houvesse escolha.



Em "O banquete", último espetáculo de "Dionisíacas em viagem" da Cia Teatro Oficina (do grande Zé Celso Martinez, de São Paulo) transformou o Nascedouro de Peixinhos no limbo. Um verdadeiro. A peça é contagiante, o próprio ambiente costura atenções ao centro, onde se passam todas as cenas. Estamos falando de um modelo diferente de ver teatro (que o Oficina já usa em São Paulo) onde o público fica em arquibancadas, como em uma arena. Do alto, tem-se a visão do todo. E que todo.

Poucas coisas dão tantas sensações quanto o teatro do Oficina; sensações sem rótulos pré-concebidos, sem precedentes. O expectador, por menos disposto que esteja a entrar no ciclo "celsiano", nunca passará incólume àquilo que o diretor quiser que se sinta. Ao entrar num espetáculo do Oficina, o público passa a ser propriedade dos atores, da cena. A não ser que desista da viagem a tempo, ingressou num caminho sem volta.



Na história encenada, Zé Celso transmuta filosofia grega em tragicomédia bem aos seus moldes, onde entram o nu (devido ou nem tanto), a ironia, o escracho, a força do (bom) texto cênico, música e tantos outros ingredientes tão bem encaixados que lhe creditam o predicado de diretor primaz. Ninguém faz teatro como Zé Celso Martinez Corrêa.

Frutas são servidas nas arquibancadas e vinho é distribuído por personagens seminus. Faz parte dos ares de realidade que “O banquete” precisa para contagiar os mais predispostos expectadores a se despir, literalmente, de moralismo e de suas roupas. Qualquer um deles que se choque com genitais à mostra tem sinais, logo no início, de que está no lugar errado.



Psicanálise e filosofia não ficam em segundo plano. Aliás, não ficariam, se os corpus nus e as cenas pornôs e eróticas não tivessem se sobressaído aos olhos de boa parte dos expectadores que estiveram nesta noite no Nascedouro. Não se trata de moralismo, mas quando a história é totalmente ignorada (como foi) o que sobra aos sentidos são nudezes totais e insinuações nada inocentes de atos sexuais - tudo aquilo que podemos captar por mero instinto. Então em meio a tanta complexidade, quando os atores discursam sobre amor, existência, sexo e outros tantos vieses, parte da plateia apenas figura na curiosidade por entidades míticas como Zeus, Hera, Eros, Pênia, Jesus e Fidel Castro que se mostram muitas vezes em posições despudoradas (ginecológicas, diria, com mais exatidão).

“Dionisíacas” é um complexo teatro para ver e sentir. Pena que a gritaria estarrecida nos trouxesse tantas vezes de volta à realidade. Principalmente quando Dona Rosa, uma moradora local, totalmente sucumbida aos encantos dos (excelentes) atores do Oficina, resolveu livrar-se das roupas e ficar totalmente nua. A gritaria aumentou por seu nome e nem os pedidos de “presentear a heroína com o silêncio” fizeram acalmar os ânimos. Para mim, quebrou-se o clima da peça e pesou o incômodo de não conseguir mais entender: restou-me ver atores e plateia trocando beijos antes de desistir e pegar o rumo (cheio de lama) de volta pra casa. Mesmo assim, foram horas valiosas.


CENA - pomba-gira coloca "voluntário" da plateia em situação limite

E, sim, estou sendo absolutamente exata quando predico “O banquete” como “teatro para ver e sentir”. Em posição difícil de descrever, um dos atores deixa o ânus à mostra e ao alcance dos dedos nada escrupulosos de Zé Celso Martinez. Sem saída: ele crava o indicador no ânus do companheiro de cena; ao retirar, joga-lhe vinho e sorve-lhe as partes. Esta é apenas uma das cenas que poderia fazer os mais moralistas execrarem o enredo.

Sem contestações, a dramaturgia de Zé Celso é inenarrável. Não por pudores ou moralismo, mas por ser gramaticalmente impossível descrever todas as sensações (inclusive o cansaço físico) que as provocações causam em quase quatro horas initerruptas de peça. É experiência única aos corajosos, (quase) imunes às agressões cênicas, amantes dos sentidos limítrofes que o bom teatro é capaz a partir de uma alma nada sã. Espero vida longa aos delírios de Zé Celso Martinez.

     Zé Celso Martinez - pederastia, audácia e teatro

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