terça-feira, 6 de julho de 2010

Pequena explicação

Atendendo ao pedido de um grande amigo, cedi-lhe espaço aqui no IC para publicar algumas (muitas) linhas sobre José Saramago, neste momento em que vivemos, muitos, um luto literário. Creio que somente quem sentiu as literatices ásperas do português poderá compreender a falência múltipla que vivemos, nós, estes muitos, desde a sua morte. Também creio que uma narrativa tão peculiar sobre o assunto, a morte, tratada como fim, só pode partir de alguém que o viveu de forma bem próxima.


Capa da Playboy portuguesa

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Passagem
Pablo Spíndola

Quando se tem uma notícia de falecimento, as reações são as mais diversas, geralmente associadas à relação de empatia que existia para com o falecido. Não é necessário conhecer ou ter proximidade, mas apenas nutrir pelo outro algum tipo de identificação. A morte sempre se apresenta como a imposição de um limite, a impossibilidade de contato que não precisa ser físico, mas é, fundamentalmente, um limite do que não se pode mais fazer.

A morte de José Saramago foi uma dessas situações em que, mesmo não tendo o contato íntimo, foi sentida pela identificação ou talvez, um pouco mais, pelo sentimento de orfandade.

Conversando com um amigo, ele retrucava essa idéia de lamentar a perda ou, como queiram alguns, a confirmação da ausência. Ele fez uma analogia que achei bem interessante: para a chuva, as gotas de água são e lhe dão corpo. Quando cada uma delas cai e se encontra com outras coisas, se desfaz, deixa a condição de chuva e passa a ser água em outras formas. Contudo, o mais interessante foi a constatação de que nenhuma gota cessa seu movimento de cair enquanto as outras encontram sua passagem. A chuva não para pela desintegração das gotas que a iniciaram.

Analogicamente, pessoas podem ser gotas e a morte, sua passagem de gota a não gota. Os que continuam vivos não param suas vidas em relação à morte de outrem, por maiores que sejam os sentimentos de luto, por maior que seja a proximidade do que passou. A vida não cessa por mais que os que continuam vivos insistam em não querer mais viver. O tempo, impreterivelmente, não para. A opção para vencer o tempo parecem ser duas: sair dele (e juntamente abandonar a própria vida) ou eternizar-se nele.

A imortalidade temporal foi associada ao registro e tomo aqui a ideia de registro de empréstimo da história, no sentido de que qualquer vestígio pode ser uma marca no tempo para constituir ou tentar montar um mosaico chamado passado.

A escrita, ou melhor, o registro escrito foi e ainda é a forma mais direta de imortalidade. Não por acaso, os que compõem a Academia Brasileira de Letras são denominados de imortais (mesmo alguns não merecendo mais que a indiferença). A idéia de registro aqui abrange as mais diversas formas, seja a codificação da música em forma de partitura até a formalização do raciocínio especulativo da química, física e matemática. Porém o tipo de registro escrito que mais interessa, comove, encanta e transforma ainda é a que transcende o seu sentido em si mesmo, seja a poesia ou o romance.

Saramago, em seus escritos, construiu sua imortalidade através dos desencantamentos do mundo. Homem de esquerda, teve como baliza a agudeza dos sentimentos do mundo. Para falar deles, incomodou a igreja, a mesma que na sua infância apoiara a ditadura portuguesa. E não se trata de justificar um pelo outro, mas perceber que Portugal foi esse país em que estava o escritor.

Filho e neto de agricultores, disse que o homem mais sábio a quem conheceu foi seu avô, de quem pode ter tomado de empréstimo uma oralidade na escrita que foi se tornando marcante em seu trabalho. Porém, outras marcas merecem melhor destaque, como a incomparável competência para falar de sentimentos e dar sentido aos universos emocionais que lhe cercavam, seja nos diálogos com deus, seja na franqueza da fragilidade das relações humanas.

Dos muitos Saramagos existentes, dois são muito especiais: o que dialoga com o homem inventor de deus e o que esmiúça os sentimentos humanos. O primeiro é mais célebre, que segundo o autor, torna deus um assassino: “como podem os homens matarem em nome de deus e não perceber que assim estão tornando seu deus um assassino?”. O segundo mostra a pequenez da vida em sociedade quando as coisas não vão bem.

O primeiro se torna um “novo” clássico da literatura: O evangelho segundo Jesus Cristo. E melhor do que falar a respeito do livro é lê-lo, tomando mais especificamente numa passagem em que o homem humaniza deus, ou melhor, mostra como deus é mais uma de suas criações: “O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue da mãe, viscoso de suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.”

Noutra passagem de beleza plácida, que só os grandes escritores conseguem fazer, Jesus é transformado em homem pela carne: “... o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua. Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim é que deveria estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido uma ofensa.”

E continua:


“Aprende teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria Magdala, que dizia, Calma não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte o seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando...”


O outro Saramago é o de "O ensaio sobre cegueira", recentemente adaptado para o cinema de forma convincente e com as limitações que existem em se passar de uma linguagem a outra (escrita para visual). No entanto, se o próprio escritor se debulhou em lágrimas aos assistir a adaptação de sua obra junto ao diretor (Fernando Meireles), não há motivos para se prolongar nessa discussão.

O livro é magistral, no sentido mesmo de parecer ser regido por um maestro, regido com intensidade e fôlego, que geralmente a boa música pode proporcionar. Porém, é um livro penoso de ser lido. Quero dizer com isso que é agudo como um faca amolada revirando as entranhas, como no dizer de Saramago: “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.”

Em sua história, os personagens ficam cegos, não têm nomes, são chamados pela ordem em que ficaram cegos ou por suas profissões. A causa da cegueira não é explicada, não precisa. O que interessa é o desdobramento dela, o comportamento, a crueza da sobrevivência relatada por uma mulher que foi a única a não ficar cega.

Cegueira e medo se confundem: “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui.”

Os relatos causam náuseas ao leitor mais desavisado entretanto a condição de sobrevivência é o pano de fundo da narrativa: “Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira, Isto é diferente, Farás o que melhor te parecer, mas não te esqueças daquilo que nós somos aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego, Acredito, mas não preciso, cego já estou, Perdoa-me, meu querido, se tu soubesses, Sei, sei, levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma, e se eles se perderam.”

O desfecho do livro tem seu ápice na constatação feita pela mulher do médico, única a enxergar: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” O brilhantismo de Saramago é intenso assim como suas palavras, não é necessário temas singelos para construções argumentativas que valem a pena serem lidas.

A constatação das mazelas humanas não conduz à desesperança. Muito pelo contrário. Em suas últimas entrevistas, Saramago repetiu uma frase de sua avó, que dizia que “o mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.” Incontestavelmente apaixonado pela vida e pelas pessoas, mesmo posto diante de sua finitude, da proximidade com a morte, queixou de não poder estar: “O pior que a morte tem é que antes estavas e agora não estas.”

Na sua passagem de gota à outra forma de água, Saramago, transformou. Modificou os seus leitores, combateu os seus críticos, sobretudo os que não tiveram competência para conviver com a diversidade de seu pensamento. A passagem dele assumiu uma forma que cultivou, como as gotas que caem de um regador, para fazer florescer um jardim. Porém também convidou à reflexão, tentou tirar da letargia o pensamento, buscou movimento no limite do pensar, ampliou as “dizibilidades” dos sentimentos do mundo.

A morte de Saramago é uma passagem. Aplacar a sensação de orfandade vai variar de acordo com cada um. Uma possibilidade para isso é entender o que Paloma, (personagem de Le Hérisson – O porco espinho –, filme dirigido por Mona Achache, inspirado em um romance de Muriel Barbery – L’ élégance du Hérisson) diz: “O que importa não é o fato de morrer, mas o que você esta fazendo quando morre.” Saramago escrevia um novo romance, talvez por isso a orfandade. Mas se as outras gotas pudessem falar com a gota que passou, esta denominada José Saramago, escutaria um sonoro “obrigado”.

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