João morreu no dia 29 de abril, há alguns anos, em uma das listas que a morte cumpre cotidianamente. Todos os vizinhos lamentaram com o mesmo jargão: “tão jovem, coitado” – reiterando aquela velha mania que têm os homens, que sempre discriminam a morte, como se ela evitável fosse.
Na verdade, João se foi aos 34, pouco mais de dois meses antes de chegar aos 35. Para ele, nem tão jovem assim. Raciocinava que sua vida, até ali, fora curta demais, e como previa morrer aos 70, tinha pela frente pouco tempo.
Quando o enfarte veio e foi, quiseram vestir-lhe em uma camisa de linho, devidamente adequada à ocasião. Talvez acreditassem que João precisaria chegar apresentável ao recinto celeste. “Sabe-se lá com quem encontrará?”. Cogitaram que ele, de toda forma, pudesse fazer uma primeira parada no inferno, talvez para pagar algum lapso rápido. Afinal de contas, tudo o que morre acaba irremediável e indissoluvelmente absolvido de seus erros. “Tão bom, coitado. Pessoa boa”.
Amarela? Melhor que seja azul, para combinar com a cor do firmamento. Pra lá é que ele vai.
Se pudesse ter levado algo para o “além-túmulo”, João queria aquela cadeira branca da cozinha, de palhinha, tinta já gasta. Desde criança, passara tantos bons momentos ali sobre, assistindo às habilidades culinárias da avó e da ama negra, que foi a primeira coisa na qual pensou, já que as duas também já haviam entrado nas estatísticas da morte. Poderiam, quem sabe, compor novamente o cenário do outro lado. Ele sobre a cadeira branca de palhinha; elas a bater massa. Ainda pensou em voltar rapidamente, levar a cadeira consigo e as lembranças – mas lembrou que “desse mundo, nada se leva” e desistiu da ideia. Deixou a cadeira (e as lembranças) lá mesmo.
Talvez, quem sabe, pudesse levar um livro; ainda pensou nisso, mas detestava a bíblia e, fora o catálogo telefônico e um livro de receitas (com aquela de biscoito de povilho e torta de castanhas do Pará), era o único exemplar que tinha em casa. Desistiu. Jamais saíra do Gênesis, embora vivesse no apocalipse.
Pensou ainda, antes de atravessar totalmente, em levar algumas fitas K7, assim, como quem não quisesse nada, dentro do bolso da calça de linho. Havia a remota, improvável possibilidade de encontrar um rádio ou coisa parecida. Ademais, que mais haveria para fazer? Junto com as fitas, podia levar pilhas. Amarelas, porque as alcalinas são caras demais e João achou melhor não partir liso, liso.
Por um instante, pensou em voltar, levar umas cuecas, meias, esparadrapo, uma bússola, coisas que, com certeza, precisará. Pensou. Talvez um mapa do lugar, se soubesse para onde estava indo, uma caixa de canetas e uma resma de papel. Um bloco, que pesa menos! Talvez uma revista de palavras-cruzadas de nível difícil, para demorar mais. Acomodou a resma debaixo do braço – precisava estar pronto para a eternidade. (TN)