terça-feira, 30 de outubro de 2012

Curta e silenciosa [parte 8]

"Eu gosto das coisas complicadas. Gosto daquilo que não posso ter, do inferno, do escuro, do amargo. O cálido já não me interessa, já não tenho ilusões, somente o que me resta e o que entendo como delírios..."

Uma caneta tinteiro repousava sobre as linhas escritas pela madrugada adentro. Insônia. O estômago ardia numa azia e Marcelo abria os olhos numa brecha. Naquela sexta, ele sentia uma enorme preguiça de viver. O vazio era exponencial, a dor era anestesia e o indiferença era grande por tudo. E todos.

Maíra dava conselhos, ouvia pacientemente, brigava com ele, mas Marcelo só conseguia ter as velhas ideias fixas. Queria deixar o apartamento de 50 m², queria que Ana lhe desse um sorriso, mas a indisposição era tão grande que dava de ombros a tudo. Nem azedo ele estava mais; já parecia aguado. 

Marcelo não sabia, mas despertava desejos. Seu ar superior, a testa enrugada, o jeito soberbo afastava uns, fascinava outros. A maioria achava que Marcelo era do tipo austero, mas na verdade ele não mandava nem mesmo nele. Aliás, em nada. Até a sala de casa ficava sob domínio de Filó, o gato persa preto de olhar penetrante que ele evitava. Marcelo pensou em suspender a ração do bicho; quem sabe assim ele iria embora de vez, por instinto. Mas nada. Era mesmo incapaz de matar aquilo que o incomodava. 

Foi para o banho para chorar, mas acabou esquecendo, lendo o rótulo do novo shampoo. A angústia desceu pelo ralo.

A azia aumentava. As refeições mal feitas causavam-lhe arrotos ácidos e um acúmulo de gordura abdominal.  E como o mundo está aí para desfazer as nossas impressões, enquanto ele se sentia um dejeto vivo, algumas mentes pensavam nele - para o bem. Outras poucas para o mal, somente porque é necessário haver essa dualidade, mesmo que ela não nos pareça conscientemente. Marcelo não via o óbvio, mas queria entender o prolixo. Lixo.

(continua...)
(nota: "Tropicália" foi pensada como acompanhamento, mas a massa desandou)

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Barroco [parte 7]

Os ouvidos de Maíra eram, há anos, o grande alívio de Marcelo.  Ela tinha a divina capacidade de ouvir, dedicava tanta atenção que seus olhos nem piscavam. Algumas vezes balançava a cabeça e esperava que ele terminasse um pensamento para interpelar. Em geral, "dava a real":

- Você sabe que está errado, né?

Para Marcelo, tudo o que saía da boca de Maíra merecia atenção. Ele ouvia, pensava e, quase sempre, ela estava certa. Todas as vezes em que se encontravam, duas a três (até quatro) vezes por semana, ele voltava para casa em paz. E isso acontecia porque o que os unia era, pura e simplesmente, um forte laço de amizade. De outras vidas, talvez. Um amor fraternal imenso que os fazia cúmplices, confidentes, companheiros. Amigos.

Mas nem sempre foi assim, com tanta paz. Passaram por crises, brigaram, e ouvir palavras duras da boca de Maíra davam uma sensação física de corte, na pele, em Marcelo. Ela sabia, fizera isso algumas vezes e em todas elas viu o amigo chorar. Mas Maíra era muito amor. Era o amor.

Naquela noite, deixou-a em casa, ganhou um puxão na orelha direita e um beijo e foi. Deitou para dormir leve. Há tempo não sentia isso, essa vontade de viver, de pensar. Percebeu que conseguia refletir sobre sua vida sem dor, listava o que tinha, tudo o que conquistara até ali. E, como era de hábito, pensava em quem cruzara suas horas nesta vida, das poucas pessoas que tinha deixado para trás. Marcelo era extremamente ligado ao humano, piedoso, penava, sofria, chorava, carregava pesos e tudo mais que cabe a esse tipo de indivíduo. Mas era leveza o que ele sentia naquele momento, na penumbra do quarto. Pensava nos pais, nos irmãos, no privilégio de ter conhecido todos os avós, duas bisavós, de ter passado poucas vezes pela morte (e por aceita-la com tranquilidade), por ver longevidade e saúde nos seus. Em instante assim, pensava em Cecília Meireles, que viveu muitas perdas físicas. Se ele também fosse escritor, não teria na morte uma fonte de inspiração, assim, tão forte, como ela.

Marcelo era de amizades forte, antigas. Os seus tinham por ele grande afeição. Era querido, embora não fosse fácil. De fato, Marcelo era um poço de contradições. Barroco, nele conviviam o amor e a indiferença (lhe ensinaram que o oposto do amor não é o ódio), a vida e o fim (não a morte), a certeza e a dúvida, a beleza e a insegurança, o rancor e a piedade, o futuro e uma dose grande de passado.

Mas, naquela noite, ele era paz.


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

CVC [parte 6]

Há dias Marcelo estava inquieto. Sentia-se em um momento de letargia porque não via sentido em nada que havia construído até ali. Ele tentava falar sobre o vazio com alguns amigos, mas só ouvia que ele pensava demais e deveria relaxar. De Maíra, Marcelo ouvia coisas mais contundentes, mais inquietantes.

- Você precisa ler mais. Precisa se soltar mais desses conceitos velhos, caducos.

Marcelo sabia que Maíra tinha razão. Ele sentia que há anos não tinha sossego, que as coisas eram mais pesadas do que ele gostaria. Leveza era algo que andava longe. Resolveu que deveria "arrumar" alguém. Olhou em volta, na redação, e só viu as mesmas pessoas de sempre, suas conversas de sempre, suas agruras e limitações de sempre. Muitas vezes quis chorar, lamentar pela solidão, mas preferia contentar-se com sua própria companhia e de alguns poucos amigos.

Naquela tarde, Marcelo quis terminar logo as obrigações e sair cedo. Desceu da redação com o dia ainda claro, andando pelo bairro antigo onde ficava o jornal. Não sabia exatamente o que fazer com aquele tempo e desejou ter alguém que pudesse decidir para ele aonde ir.



Entrou no shopping center vizinho, passou em frente a uma agência de viagens. Paris, Salvador, Cancun, Rio de Janeiro, "Ilhas gregas em cinco dias", "um fim de semana em Gramado". Seu nível de tédio subiu. Marcelo detestava clichês, como a muitas outras coisas. Suspirou fundo. Apanhou um panfleto e dirigiu-se à funcionária da loja:

- Tem algum roteiro para uma viagem diferente, Leila? - disse, lendo o nome da moça de cabelos tingidos e nariz pequeno.
- Temos todo tipo de pacote, senhor - Leila respondeu, em meia voz.
- Algum para a África? - arriscou.
- Não, senhor. Não trabalhamos muito o turismo exótico. Mas temos excelentes promoções para Miami e Orlando.

Marcelo sentiu uma pontada no estômago.

- E o que há de bom lá? - rebateu, no deboche, fingindo interesse.
- O senhor pode levar os filhos para a Disney. Parcelamos em 12 vezes sem juros - ela retrucou, estendendo um panfleto.
- Ótima sugestão, Leila. Vou avaliar.

Saiu pensando como alguém que tenha filhos (assim, no plural, seriam quantos? Dois? Seis?) pode ter também coragem de sair com eles do País.

- Doze vezes?

Viu um novo café no shopping. Hesitou sentar ali porque isso, com certeza, o faria pensar, mas não resistiu ao vício da cafeína. Deixou-se sentar, abriu o cardápio, olhou demoradamente, pediu o de sempre.

- Um capucchino grande, por favor. Com o dobro de canela e sem açúcar.

Olhou para o panfleto:

- Nossa... Bariloche, Buenos Aires... - pensou, amassando o panfleto.

Estendeu a vista à frente e viu uma moça sentada. Parecia impaciente, balançava o pé pendurado da cruzada das pernas. Olhava o relógio de pulso, e adiante.

(continua...)

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O ÓBVIO ULULANTE - Assim é um líder



(...) Aí está o mistério que, realmente, não é mistério. É uma verdade historicamente demonstrada: - o canalha, quando investido de liderança, faz, inventa, aglutina e dinamiza massas de canalhas. Façam a seguinte experiência: - ponham um santo na primeira esquina. Trepado num caixote, ele fala ao povo. Mas não convencerá ninguém e, repito: - ninguém o seguirá. Invertam a experiência e coloquem na mesma esquina, e em cima do mesmo caixote, um pulha indubitável. Instantaneamente, outros pulhas, legiões de pulhas, sairão atrás do chefe abjeto.

(...) Quem ia mudar qualquer coisa neste País? A esquerda tem um canalha para exercer uma liderança concreta e proveitosa? Senhoras entraram no debate. Fez-se, ali, uma alegre pesquisa de pulhas. Mas os canalhas lembrados eram, ao mesmo tempo, imbecis. E o que a História pedia era um crápula com seu toque de gênio. Em suma: não ocorria aos presentes um nome válido. A última palavra foi minha. Disse eu mais ou menos o seguinte: - enquanto a esquerda que aí está não for substituída até seu último idiota, não vai acontecer nada, rigorosamente nada. Um outro, também de saída, com uma certeza em um só tempo jucunda e cruel: - ‘A presente Esquerda não tem competência nem para soltar um buscapé’.

Nelson Rodrigues, para O Globo, em 9 de janeiro de 1968