"Eu gosto das coisas complicadas. Gosto daquilo que não posso ter, do inferno, do escuro, do amargo. O cálido já não me interessa, já não tenho ilusões, somente o que me resta e o que entendo como delírios..."
Uma caneta tinteiro repousava sobre as linhas escritas pela madrugada adentro. Insônia. O estômago ardia numa azia e Marcelo abria os olhos numa brecha. Naquela sexta, ele sentia uma enorme preguiça de viver. O vazio era exponencial, a dor era anestesia e o indiferença era grande por tudo. E todos.
Maíra dava conselhos, ouvia pacientemente, brigava com ele, mas Marcelo só conseguia ter as velhas ideias fixas. Queria deixar o apartamento de 50 m², queria que Ana lhe desse um sorriso, mas a indisposição era tão grande que dava de ombros a tudo. Nem azedo ele estava mais; já parecia aguado.
Marcelo não sabia, mas despertava desejos. Seu ar superior, a testa enrugada, o jeito soberbo afastava uns, fascinava outros. A maioria achava que Marcelo era do tipo austero, mas na verdade ele não mandava nem mesmo nele. Aliás, em nada. Até a sala de casa ficava sob domínio de Filó, o gato persa preto de olhar penetrante que ele evitava. Marcelo pensou em suspender a ração do bicho; quem sabe assim ele iria embora de vez, por instinto. Mas nada. Era mesmo incapaz de matar aquilo que o incomodava.
Foi para o banho para chorar, mas acabou esquecendo, lendo o rótulo do novo shampoo. A angústia desceu pelo ralo.
A azia aumentava. As refeições mal feitas causavam-lhe arrotos ácidos e um acúmulo de gordura abdominal. E como o mundo está aí para desfazer as nossas impressões, enquanto ele se sentia um dejeto vivo, algumas mentes pensavam nele - para o bem. Outras poucas para o mal, somente porque é necessário haver essa dualidade, mesmo que ela não nos pareça conscientemente. Marcelo não via o óbvio, mas queria entender o prolixo. Lixo.
(continua...)
(nota: "Tropicália" foi pensada como acompanhamento, mas a massa desandou)