Os ouvidos de Maíra eram, há anos, o grande alívio de Marcelo. Ela tinha a divina capacidade de ouvir, dedicava tanta atenção que seus olhos nem piscavam. Algumas vezes balançava a cabeça e esperava que ele terminasse um pensamento para interpelar. Em geral, "dava a real":
- Você sabe que está errado, né?
Para Marcelo, tudo o que saía da boca de Maíra merecia atenção. Ele ouvia, pensava e, quase sempre, ela estava certa. Todas as vezes em que se encontravam, duas a três (até quatro) vezes por semana, ele voltava para casa em paz. E isso acontecia porque o que os unia era, pura e simplesmente, um forte laço de amizade. De outras vidas, talvez. Um amor fraternal imenso que os fazia cúmplices, confidentes, companheiros. Amigos.
Mas nem sempre foi assim, com tanta paz. Passaram por crises, brigaram, e ouvir palavras duras da boca de Maíra davam uma sensação física de corte, na pele, em Marcelo. Ela sabia, fizera isso algumas vezes e em todas elas viu o amigo chorar. Mas Maíra era muito amor. Era o amor.
Naquela noite, deixou-a em casa, ganhou um puxão na orelha direita e um beijo e foi. Deitou para dormir leve. Há tempo não sentia isso, essa vontade de viver, de pensar. Percebeu que conseguia refletir sobre sua vida sem dor, listava o que tinha, tudo o que conquistara até ali. E, como era de hábito, pensava em quem cruzara suas horas nesta vida, das poucas pessoas que tinha deixado para trás. Marcelo era extremamente ligado ao humano, piedoso, penava, sofria, chorava, carregava pesos e tudo mais que cabe a esse tipo de indivíduo. Mas era leveza o que ele sentia naquele momento, na penumbra do quarto. Pensava nos pais, nos irmãos, no privilégio de ter conhecido todos os avós, duas bisavós, de ter passado poucas vezes pela morte (e por aceita-la com tranquilidade), por ver longevidade e saúde nos seus. Em instante assim, pensava em Cecília Meireles, que viveu muitas perdas físicas. Se ele também fosse escritor, não teria na morte uma fonte de inspiração, assim, tão forte, como ela.
Marcelo era de amizades forte, antigas. Os seus tinham por ele grande afeição. Era querido, embora não fosse fácil. De fato, Marcelo era um poço de contradições. Barroco, nele conviviam o amor e a indiferença (lhe ensinaram que o oposto do amor não é o ódio), a vida e o fim (não a morte), a certeza e a dúvida, a beleza e a insegurança, o rancor e a piedade, o futuro e uma dose grande de passado.
Mas, naquela noite, ele era paz.
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