domingo, 11 de novembro de 2007

A matéria embolorada do teste!

Montagem/ Filipe Falcão (gentilmente cedida sem aviso prévio)
Trashes da vida, na seqüência: trash do catamarã, em abril/2007; primeira trash com paquitas; show de Kátia Cega e homenagem de Lívia e Filipe à cantora.



» COMPORTAMENTO

O passado é a onda do presente
Publicado em 04.11.2007

Cada vez mais pessoas buscam em décadas que já vão longe inspiração para o que toca no seu aparelho de som e até nas roupas que vestem

Tatiana Notaro
tnotaro@jc.com.br

Hábitos de consumo e transformações políticas e sociais deram a cada década do século passado um estilo peculiar. Entretanto, o passado está presente em grande parte do que vemos (e como vemos), vestimos e ouvimos hoje. As regravações, a moda retrô, artistas que ressuscitam e tribos que revivem estilos existem aos montes. Os revivals formam uma nuvem de nostalgia que começou no início dos idos anos 90 e trazem até hoje a saudade dos bons e velhos tempos.

O professor de publicidade da Universidade Católica de Pernambuco, Fernando Fontanella, estuda as chamadas culturas populares. “Na minha tese de doutorado, analiso a atração das pessoas pelo passado, principalmente o cultural. A partir do fim da década de 80, a cultura pop entra em uma auto-referência muito forte em relação ao passado e começa uma série de ciclos”, disse. Segundo Fontanella, o início dos anos 90 trouxe um revival dos 40 e 50, com referências do rockabilly (subgênero do rock criado nos anos 50) e seriados como Anos dourados e Anos incríveis, e filmes, como De Volta para o futuro.

Gradualmente, houve uma transição para o estilo anos 60 com uma onda hippie e a releitura do festival Woodstock em 1994, em Nova Iorque. “Logo depois, ressurge a disco da década de 70. É o retorno da calça boca-de-sino, do ator John Travolta às telas e de grupos como o Village People”. Nos últimos anos, houve uma explosão 80 e as festas trash caíram no gosto do público. “Agora estaríamos à beira de reviver os anos 90, mas o que se vê são tribos que tomam o passado como estilo de vida”.

Passando para a prática, o estudo de Fontanella pode ser comprovado. Depois de começar a estudar a língua espanhola, o estudante de direito Bruno Araújo, 26 anos, tornou-se fã do cantor cubano Bienvenido Granda (foto). Conhecido como “el bigote que canta” (o bigode que canta) e famoso na década de 40 por seus boleros e voz inconfundíveis, Bienvenido morreu em 1983. “O professor sugeriu que ouvíssemos músicas hispânicas para melhorar a fluência. Um dia, meu pai chegou com o CD de uma figura de bigodes enormes. Os nomes das canções eram curiosos, como La cancíon del borracho (A canção do bêbado)”, disse Bruno. Ele comprou vários álbuns do cantor e apresentou a descoberta aos amigos. “A maioria deles não gostou, falavam que era música de radiola de ficha”. Apesar do preconceito, Bruno cultiva outros ídolos atípicos para a sua idade, como a cantora argentina Mercedes Sosa. “Meus amigos dizem que tenho gosto de velho, mas eu não acho. Gosto de coisas boas”.

As influências das cinco últimas décadas do século 20 também estão espalhadas pelas vitrines. A estudante de design Raíza Bruscky, 21, tem o guarda-roupa bem ao estilo retrô (do francês rétro, que significa antiquado). “Uso camisas de botão, saia confortável e sapato tipo boneca”, descreveu. A professora de moda da Faculdade Senac, Carmem Marinho, explica os estilos inspirados no armário da vovó. “O retrô é influenciado por modelos antigos. São peças novas com ares de brechó. Já para o vestuário original, realmente feito em décadas passadas, o nome dado é vintage". Ela alerta que é necessário cuidado com o gosto pelas modas do baú. O exagero pode transformar charme em uma fantasia de época.

Mas referências sutis aos detalhes mais charmosos e marcantes de outras décadas podem ser encontradas facilmente. Na loja Maria da Silva, no bairro das Graças, as coleções de design moderno carregam laçarotes, botões grandes ou cobertos e detalhes como casas de abelhas e nervuras. “Nossas roupas não são retrôs, mas têm bagagem. Usamos muito o estilo balonê e as mangas fofas”, descreveu Germana Valadares, estilista da marca. Já a Madame Surtô, assinada pela estilista Thaïs Asfora, tem, assumidamente, o pé no passado. “Em todos os segmentos existe aquilo que já deu certo e dispensa mudanças. Na moda, Chanel chegou ao ápice do charme”, disse Thaïs, referindo-se à estilista francesa falecida em 1971. O glamour dos anos 50 e 60, na sua opinião, são dos estilos mais marcantes já criados. “É nisso que busco a feminilidade que se tornou o traço da Madame Surtô. Aderir ao retrô é buscar esse glamour perdido”.

Nem a sétima arte, hoje já tão cheia de efeitos especiais, consegue se livrar dos seus antepassados. O jornalista Filipe Falcão, 25, é fã dos gêneros produzidos nos anos 80. “Adoro a estética dos anos 80. É tudo muito malfeito se comparado às produções atuais”, disse. Ele usa como exemplo a série A hora do pesadelo (Nightmare on Elm street, EUA), que teve seu primeiro filme lançado em 1984, precedendo uma época de grandes clássicos, como Massacre da serra elétrica (The Texas chain saw massacre, EUA, 1973) e Psicose (Psycho, EUA, 1960). “Hoje, não temos séries que se assemelhem à saga de Freddy Krueger. São 27 anos e 10 filmes. Os filmes de hoje têm uma megabilheteria, mas são caríssimos. Os da década de 80 têm coisas precárias, como cenários de papelão e elenco ruim, mas conseguem envolver o público nessa combinação estranha de coisas”.

Filipe também é fã da banda Roxette e da cantora Madonna. Perguntado se esses artistas teriam a mesma repercussão se tivessem despontado hoje no cenário musical, o jornalista é enfático. “De jeito nenhum. Madonna abriu a porta do entretenimento para um formato que não existia. Foi contestadora, falou de sexo, afrontou a igreja. Hoje, isso não surtiria o mesmo efeito. Qual o artista que você conhece tem 25 anos de carreira e a turnê mais lucrativa da história da música, para uma artista feminina?”. A mais rentável turnê da história da música foi a dos ingleses da Rolling Stones, que durou 3 anos. A última turnê de Madonna, Confessions tour, durou 4 meses e faturou US$ 194 milhões.

Voltando às teorias, Fontanella explica que as marcas culturais substituem ciclos da vida que se perderam. “Vamos dizer que antigamente as fases eram a escola, faculdade, o casamento, filhos e aposentadoria. Hoje, essas etapas não estão claras e perderam espaço para uma forte vivência midiática. Dizemos ‘quando eu era criança, assistia tal desenho’ ou ‘quando era adolescente, ouvia tal música’. Revisitamos esses momentos consumindo as mesmas coisas da época”.

E se estamos em uma época em que a passagem do tempo não faz muito sentido, é natural, segundo o professor, que busquemos referências. “É como se existissem compartimentos para você mergulhar, com um universo de símbolos livremente disponíveis para consumo”.


Festas trash ressuscitam melhor e pior dos anos 80

“Superfantástico, amigo, que bom estar contigo no nosso balão”. Esse é o primeiro convite aos corações mais nostálgicos que comparecem às festas estilo trash que acontecem no Recife desde 2002. Nelas, já pisaram figuras como a cantora Rosana (do inconfundível verso “como uma deusa você me mantém”, da canção O amor e o poder), as Paquitas (do Xou da Xuxa, extinto em 1992), Kátia (a “afilhada” de Roberto Carlos, dona do hit Não está sendo fácil) e Luiz Caldas (que na trash de Carnaval embalou abelhas ao som de Haja amor), além de covers bem satíricos de Sidney Magal, Simony (do Balão Mágico - foto) e Roberto Carlos.

O estilo começou no Rio de Janeiro e São Paulo, no ínicios dos anos 2000. As festas Ploc exploraram um universo até então esquecido. Segundo Manoel Guimarães, organizador de uma das trash recifenses, o estilo já conquistou o público. “Na nossa primeira festa, em abril deste ano, juntamos 1.200 pessoas. Com o sorteios de ingressos para usuários do JC OnLine, ficamos sabendo que 56% das pessoas que participaram são homens entre 25 e 35 anos”, disse. Manoel conta que nas enquetes promovidas na comunidade da festa no orkut, no quesito set list, músicas infantis ganham na preferência. “O jingle mais lembrado foi o da Estrela (a fábrica de brinquedos fundada em 1937). Com essa, eu já vi marmanjo emocionado”. Os jogos Banco imobiliário, Genius e War, e o brinquedo Pogoball estão no topo da lista dos mais lembrados.

Relembrar as festas traz risos a Manoel. “Uma vez, fizemos uma performance do grupo Dominó, com peças de dominó feitas de papel coladas na camisa e calças apertadas. No concurso de lambada, o casal vencedor ganhou uma geléia de mocotó Inbasa”. No telão instalado no fundo do palco, diz o organizador, passam cenas de desenhos animados inesquecíveis, como Smurfs (foto), Snorkels e Caverna do dragão.

Mas há uma linha que separa os saudosistas dos fanáticos pelos revivals. O termo kidadults (do inglês kid, criança, e adults, adultos) define pessoas que não aceitam a vida adulta e mantêm comportamentos e hábitos de crianças. “Não é o simples saudosismo. O saudosista suspira pelo passado, mas com consciência de que ele passou. No Bloco da Saudade, por exemplo, as pessoas sabem que aqueles carnavais não voltam e vivem a atmosfera apenas naquele momento. Os kidadults têm a vida mergulhada no passado. O nível de consumo é maior, já que não é somente aquele momento da festa trash. Os anos 80 passam a ser o estilo de vida”, explicou Fernando Fontanella.

Perguntado sobre o motivo pelo qual as pessoas tendem a resgatar o passado, Manoel é taxativo. “Para mim, tudo já foi inventado, o que nos resta agora é imitar”. A respeito disso, Fontanella entra em uma discussão sobre os limites da criatividade. “É um tabu determinar isso no campo da arte, mas na música o que ainda falta? Você tem possibilidades infinitas de criação, mas elas fatalmente acabam sendo influenciadas pelo passado. Entretanto, isso não é ruim se há uma relação saudável com essas memórias”, explicou. Então, vale a pena cultivar as boas recordações e para isso, a teoria não define idade.

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