quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Construção [parte 9]

Filó, sentado perto da quina da parede, olhava fixamente para o nada. Da poltrona, tentando ler um livro de 860 páginas pela trigésima vez, Marcelo dividia atenção entre a história da eugenia norte-americana (em "A guerra contra os fracos", de Edwin Black) e o gato, que parecia observar o que só ele via. Acendeu um cigarro e a brasa fez o bicho mudar de foco. Agora fitava copiosamente a ponta reluzente, que fumaçava.

- Bicho tosco! - reclamou, alto, sem motivo. Filó não se mexia.

Marcelo abriu uma garrafa de vinho barato, um Quinta do Morgado, que ele havia trazido do supermercado na noite anterior. Bebia sem gosto, folheava a eugenia e tentava se concentrar. Pensava em Ana, nas pautas da semana seguinte, em Sandra e nas contas a pagar. Queria viajar, mas nunca se dava ao direito a uma passagem para o aleatório. Tudo na sua vida era milimetricamente pensado, refletido. Ora, acertado; ora, chato.

Preencher a vida de utilidades vinha sendo o grande objetivo daquele ano novo. Marcelo retomou projetos empoeirados, tentava ler livros encalhados, tirou da lista (e pôs na prática) a intenção de recomeçar uma atividade física. Perdeu peso (na barriga e na consciência) e prometeu a si mesmo que perderia ganharia mais tempo em frente ao espelho, observando a si mesmo. Estava em busca do melhor e mais fiel autorretrato que pudesse fazer. Autoconhecimento - ele decidira - era o caminho certo para livrar-se de si mesmo.

Do dia seguinte, acordou cedo para experimentar outro horário; foi para a academia e aumentou a velocidade da esteira, para experimentar outro pique. Mudou tanto que ficou sem ar, ofegante, com o coração a mil. Era bom para sentir-se vivo em meio àqueles que morrem ao seu lado. Porque Marcelo construía castelos demais, com cada vez mais frequência; mas com bem menos piedade, era capaz de matar. Agora, ele, que se acostumou por toda a vida a se interessar por migalhas, passava a exigir sempre a primeira leva, o melhor corte, o tipo exportação. Sem outras condições.

Fora imposição, ele sabia. Era a vida, mas era uma condição artificial. Ele tentava odiar, porque não podia amar; tropeçava como se ouvisse música, agonizava no meio do passeio náufrago. Pensava em desistir, embora ainda desejasse. Mas quem se importa? Antes de tudo, amou daquela vez como se fosse a última. E se fosse? O problema é que, para ele, havendo poréns, havia também poucos meios termos.




E se fosse?

[continua...]

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