quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Motivos para amar...

NELSON RODRIGUES

"(...)
Dona Amália passou os olhos sobre as folhas de cadernos, quase caíram-lhe os óculos ao ler uma delas e, por via das dúvidas, selecionou duas vencedoras e não uma. A primeira, de um garoto chamado Frederico, cujo sobrenome não passou à História, contava o passeio de um rajá no seu elefante. A outra - a de Nelson - era uma história de adultério. Um marido chega de surpresa em casa, entra no quarto, vê a mulher nua na cama e o vulto de um homem pulando pela janela e sumindo na madrugada. O marido pega uma faca e liquida a mulher. Depois ajoelha-se e pede perdão.

Quando recebeu e leu para si a redação de Nelson, dona Amália tirou os óculos e olho-o como como se tivesse diante de um aluno que ela nunca tinha visto. (...) A redação de Nelson não tinha como não ser premiada, mas não poderia ser lida em classe. Então premiou-se também a do rajá no elefante e só esta foi lida. Mas, intimamente, Nelson sabia que havia sido o único vencedor.

Duplamente, aliás, porque começara a redação com uma frase - "A madrugada raiava sanguínea e fresca" - tirada quase "ipsi literis" de um verso do batidíssimo soneto "As pombas", de Raimundo Correia. E dona Amália não percebera ou fingira que não.

O detalhe do plágio é importante porque, tanto quando a opção pela adúltera, esconde - ou, por outra, não esconde - um diabolismo que, até então, só dona Caridade, mãe da menina Ofélia, enxergara em Nelson, quatro anos antes. O adultério, em si, nem tanto: não há criança de subúrbio que não tinha sido contemporânea de um caso desses sem se impressionar. E as histórias como aquela, talvez com desfechos menos trágicos, eram frequentes na rua Alegre e adjacências, onde florescia uma vizinhança particularmente abelhuda e fofoqueira. O excepcional era Nelson ter se atrevido a pô-la em palavras numa redação escolar.

(...)"

*De "Anjo pornográfico", de Ruy Castro

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

No meio do caminho, uma mão

Que se chame ONU ou qualquer outra coisa. Pode ter o meu nome; ou o seu.
Para ler a história do pequeno grande Minhaj, esse somaliano de fibra, clica aqui.

E você ainda diz que não acredita em milagres?

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Quais são suas saudades?

Estudei a vida toda no mesmo cantinho e aquele lugar está entre as maiores saudades que eu tenho na vida. Não do espaço, mas dos momentos; a sorte é que não tenho saudades das pessoas, que estão todas aqui. Mas eu ainda lembro dos jogos de futebol dos meninos, das partidas de dominó (deles), das aulas de educação física, das partidas de basquete, das fardas iguaizinhas, de cumprimentar "seu" Pedro, "seu" Henrique, "seu" Passira, "seu" Vicente. Saudades do pão de queijo da cantina, do cheiro de tinta guache, do vestiário da natação, das aberturas dos jogos internos...

Tenho muitas saudades nessa vida, ainda no início.

Morro de saudade da casa de vovó Gilcéia, um prediozinho caixão super charmoso na rua dos Navegantes, em Boa Viagem. A fachada era pintada de salmon, tinha janelões amplos e um corre-mão convidativo. Foi o meu primeiro reduto de boemia, que me ensinou aquela matemática: (pessoas amadas) + (boa música) + (muita comida) = felicidade plena. O edifício Julieta nem existe mais, mas eu ainda tenho a maior atração por prediozinhos caixão, charmosos e com cara de lar.

Morro de saudade do quintal de vovó Edda, o maior dos mundos, o reino da fantasia, a floresta, o reduto do jamais esquecido Apolo, companheiro fiel, como todo canino o é. Dos coqueiros (do coqueiro de cocos amarelos, imexível), das goiabeiras, das flores de vovó e do cantinho onde eu plantava caroço de feijão. Ah, as fogueiras de São João.

Vivo com saudades da casa da Barbie montada debaixo da bancada, daquela brincadeira incansável com Juliana. De montar a escola, arrumar mochila da todos os nossos 15 filhos, de fingir que a Xuxa era a empregada da Barbie e de achar muito estranho que a Chuquinha cabeçuda fizesse as vezes de filha. Eduardo, meu primeiro filho, continua no quarto. Hoje meio mofado, meio esquecido, com cara de pidão em cima da estante. Ele não viaja mais, nunca mais ganhou uma muda de roupa...

Saudade também de tardes de cinema aos domingos e de conversa boa, numa inocência de que as coisas poderiam progredir. De acreditar que não tinha como haver distância ali, que não tinha como não dar certo. Saudades dos suspiros e de achar que ele era a melhor coisa do mundo.

É, meu amigo
Só resta uma certeza
É preciso acabar com essa tristeza
É preciso inventar de novo o amor...


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

ROCK in RIO - eu disse que ia, eu fui

No voo de volta do Rock in Rio, vim pensando em como a sensação sobre as coisas mudam. Fiquei na fissura de ir ao festival porque ouvi, ainda pequena, a história da minha tia, Gilka, que foi para a primeira edição, de 85, meio sem querer (a gente contou essa história aqui). Tinha também aquela coisa Cazuza, "Pro dia nascer feliz" e algo do tipo Woodstock felings. Não foi bem assim.

Vamos combinar que, vislumbrando um festival de rock, uma programação excessivamente eclética dá ares de "vale tudo" (por dinheiro). Se estamos falando de rock, é no mínimo honesto que se corra (para longe) de tipos como Cláudia Leitte, Ivete Sangallo, Shakira, Rihanna e cia. ltda. Tenho nada contra, embora não consuma esse tipo de música, mas destoa excessivamente e nada disso tem a ver com rock. Comprei o ingresso no primeiro lote, ainda em 2010 (como registrei aqui), mas fui ficando desanimada a medida em que era divulgada a programação. Fiquei imaginando como seria ir a um festival de rock pra ficar vendo o povo pulando ao som de versos como "eu quero mais é beijar na boca". E, pra mim, quase tão importante quanto quem está no palco é quem está na plateia e público misturado acaba com o tesão da coisa.

E se você fosse projetar seu próprio festival de rock, que faria com o quesito areia + água = lama? Defina como quiser, mas pra mim, piso é coisa de boate e grama sintética, de campo society. Claro que aquele tapete de grama plástica quebrou o maior galho para descansar as pernas, mas também quebrou o climão. É tudo "confortável" demais para um festival de rock. Ok, pode dizer que Woodstock ficou em 69, mas você há de convir, tem tudo a ver.

Confesso que fiquei torcendo por um toró daqueles para desmanchar escova de gente modista metida a roqueira, mas que vai pra um evento daqueles montada num salto (!) e trabalhada na maquiagem tipo "baladinha" para ficar cantarolando aquele som meio emo do Cold Play. Sério: quase me senti um E.T. por ser do parco grupo de meninas que não tem cabelos loiros-e-alisados-quimicamente. São Pedro não me atendeu, mas eu adoraria ter visto nêga correndo da chuva pra não deixar o reboco cair.

Estou parecendo uma velha resmungona, mas é a ponta de frustração que me sobrou depois do Rock in Rio. Até porque, se o slogan era "por um mundo melhor", eu não vi nada de enaltecedor na quantidade de lixo (a proposta de sustentabilidade foi pelo ralo, porque papel era bóia) e nos preços absurdos das coisas (R$ 13 por um sanduíche - leia-se hamburguer, pão e queijo. Pra ter molho, mais R$ 2 | No mínimo R$ 80 por uma camiseta-souvenir de malha | R$ 5 por um copo de refrigerante de 300 ml), principalmente com aquela quantidade gigante de grandes patrocinadores: Claro, Itaú, Sky, Coca-cola, Niely Gold, Correios e até uma versão exclusiva de um perfume Paco Rabanne.




Pô, Frejat... de terninho?
FREJAT
Eu já confessei que escolhi o dia 1º de outubro por causa de Frejat. Gosto de Elton John, mas além dele não ser nada rock, estava super mal acompanhado no primeiro dia. Lobão, que era minha esperança, nem entrou na programação. Aliás, Frejat fez um show ótimo, mas ele continua, pro grande público, como a parte viva de Cazuza (e bastou cita-lo pra galera gritar). E ele ajudou, quando começou com "Exagerado", música de Cazuza na qual ele nem tem parceria. Na hora eu achei estranho, mas Frejat anda "diversificando" o repertório nessa fase da carreira solo, na proposta "Essa tal felicidade", fazendo a linha intérprete que é um desperdício. A surpresa pra mim foi ele cantar "Malandragem" (nunca tinha visto/ouvido) - aí sim, dele e de Cazuza - e a participação de Rafael, filho dele (de Frejat, claro), que toca guitarra muito bem. Mas, na boa, quando ele entrou no palco de terno, eu já perdi 5% do tesão. Confesso de novo: adorei o show! Skank (uma das bandas favoritas da minha irmã, Juliana) e Zeca Baleiro também fizeram bem o trabalho de palco.

AMÉM
Quem aproveitou o slogan positivista do Rock in Rio 2011 foi a comunidade evangélica do Rio de Janeiro, que pregou que, "Por um mundo melhor", "só com Jesus". A frase foi exaustivamente repetida em cartazes ao longo do caminho até a Cidade do Rock e distribuída em bilhões de panfletos-poluidores (claro, quem guarda panfletos?) com um textinho bizarro que li por cima, até eles misturarem religião com música e colocarem Jesus no meio.

No momento, eu estou vendo o show atrasadíssimo dos Guns'n Rose, que termina esta edição do Rock in Rio. Axl atrasou mais de duas horas e eu acho muito bem feito, já que a organização do festival, enaltece demais os artistas gringos. Sim, eles já anunciaram que o próximo Rock in Rio já está marcado, para setembro de 2013. Ingressos, claro, já podem ser comprados. Se vou? Aí é outra história.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

AD, 20 de outubro de 2050

 
Estava pensando nas escolhas que fiz na vida. Clichê. Inevitável a todo vivo. É que do alto (altíssimo) dos meus quase 70 anos, vendo o fim impassível que se aproxima, temo por só ter a lamentar as más escolhas que fiz. Podia hoje estar bem de aposentadoria, gozando de uma vida confortável com rendimentos justos, com amor à boca, mas optei por outro caminho e a história foi bem diferente. O que penei pela vida toda - todos os percalços que, sei, você acompanhou de perto - serviu para chegar até aqui e assinalar a conclusão: fiz escolhas erradas. Muitas, várias. Desculpe não ter ouvido tudo o que você me disse, perdoe por não ter visto o que você apontava, por não ter aberto pra você entrar. Não. Lamento. Perdoe-me.

Aí hoje eu olho para o lado direito da cama e não vejo ninguém. E nem é isso que dói, sabe? Acho que hoje esse vácuo tinha mesmo que estar vazio, já que a antiga personagem não fazia mais sentido. E falando em sentidos, eu penso em sentimentos, no sentido das coisas que passam e você nem sente. Era você, há alguns anos, ali, ao meu lado, como uma doce e insistente ironia do destino. Se tivesse dado mais... nem sei. E eu nem aí pra você, dei de ombros para a sua presença indispensável que ocupava muito menos espaço que merecia. Hoje dói. Mas como o tempo passa, foi ficando distante, invisível até parecer uma cabeça de alfinete perdida no espaço. Aí às vezes eu deliro: ainda podereis querer-me como já quisestes? Não creio. Já não caibo em ti. Fosses tão longe e eu fiquei para trás.

''Esqueça
As horas nunca andam para trás
Todo dia é dia de aprender um pouco
Do muito que a vida traz''

Mas onde estava toda essa noção até então? Porra. Terá sido chamada simplesmente do linear e indecifrável fim. Sim, porque a gente lida com o tal fim, com prazos, com os "the end"s dos filmes e nem assim isso cabe na mente. A cabeça não absorve essa salobra ideia de finitude, embora nos persiga, embora persista em dizer que "sim, eu chego e você não vai". Você foi. Morreu, embora me pareça tão bem, e viva.


E o que faço aqui, agora, nesse fel do inferno? Que predicado dar ao amargo que dá na boca daqueles que se arrependem? Eu digo que fui 90% burro. Sabe? Eu te tive, quis te sentir tantas vezes que achei que chegaria, mas fui adiando. Eu ainda lembro quando te vi com aquele terceiro, sinto ainda a pontada do perdedor, mas ainda ali nem tive força de reação. Acho que não eras para ser minha. Mas se não eras... então, é por isso que ainda te sinto? Não responda.

Passarei os anos que me restam sem saber como seria ter dado aceite ao teu olhar que tanto suplicou. Eu sei que desejavas aquela história comum de dormir e acordar juntos, mas sei que também pretendias fazer dos meus dias dias melhores. Comova-se. Minha burrice acabou livrando-te da minha companhia: se houvesse descoberto antes, você nunca mais ia se livrar de mim.

E me desculpe, se possível for, pelas erudições, pelas futilidades, pelo desapego e pelo amor.
Me perdoe por você ter sempre razão.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Sobre gênios, sobre genialidades

Eu queria ser gênio. Quando era bem criança e tirava nota baixa em ditados ou cópias no colégio, por pura preguiça (óbvio), painho me colocava de castigo. Impunha-me um livro de Monteiro Lobato, um exemplar do longo Sítio do Pica-pau Amarelo, e me obrigava a ler e copiar um capítulo inteiro. Era um suplício.

Mas lembro bem de um dia em que copiava umas falas de Emília, que dizia ao Visconde de Sabugosa que iria escrever suas memórias, e ponderei ser uma ideia boa. Eu achava Emília genial. Entendia nada que ela filosofava e, por isso mesmo, achava que deveria ser tão inteligente que eu, recém alfabetizada, sequer tinha condições de entender. Aí fiquei naquela de aprender a escrever bem, cada vez melhor, e por aí seguir o caminho até a genialidade.

Até achei que seria possível alcançar tal patamar, até começar a ler Machado, Saramago, Clarice; até ouvir Bach, até analisar Chico. Percebi que era melhor procurar ser simplesmente boa, fazer o que gosto, que o resto seria mera consequência.

Hoje, eu ainda gosto de ler e, principalmente, ouvir o que toque, o que beire ou entre na genialidade. Mas acredito totalmente que a perfeição (ou algo próximo a ela) seja somente o resultado de muito esforço, disciplina, talento, dedicação... algo que toque alguém.

Vai, viajei... assiste aí pra entender.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Cascavilhando arquivos


Às vezes leio um texto legal e guardo na caixa de e-mail pra servir de inspiração em algum momento de vazio. Eis que surge algo interessante para ocupar a lacuna dessa fase da vida onde hoje vira ontem tão rápido que chega a ser assustador...



Desculpe, morri
(Marcelo Rubens Paiva, publicado no jornal O Estado de S.Paulo, em 29/10/2005)

- "Boa-noite, é... Marcelo?"
- "Quem é?"
- "É você?"
- "Quem está falando?"
- "Puxa, que bom, eu precisava tanto falar com você, não imagina o trabalhão que deu pra descolar o seu... "
- "Quer falar com quem?"
- "Com você mesmo, Cariri."
- "Cariri?"
- "Não era o teu apelido em Santos?"
- "Como você sabe?"
- "Pesquisei. Apelido louco. Por que te deram esse apelido?"
- "Olha, o que você quer?"
- "Sou estudante de jornalismo e estou fazendo um trabalho."
- "Como você descolou o meu telefone?"
- "Desculpe, Cariri. A pessoa que me deu pediu para não ser identificada. Você é uma figurinha difícil de achar, hein? Marcelão, Marcelão... Como vão as coisas?"
- "Indo."
- "O seu Corinthians, hein?"
- "Meu e de muito gente."
- "E a Ana?"
- "Ana?"
- "A do livro."
- "Que livro?"
- "Como que livro ? O seu livro!"
- "Qual deles?"
- "Tem mais que um?"
- "Tem alguns."
- "Caramba! Estou falando do primeiro. Tinha a Ana, que namorava você na época da ditadura."
- "Ah. Não se chamava Ana. Nunca mais vi."
- "Puxa, mas vocês eram tão..."
- "Ligados? Mas isso faz tempo, era ditadura ainda. Éramos adolescentes."
- "E a galera toda?"
- "Qual?"
- "A do livro?"
- "Sei lá. Faz 25 anos isso."
- "A Bianca, a Gorda?"
- "Cara, estes nomes são inventados. Cada um foi para o seu lado. O mundo gira, a caravana passa."
- "Que caravana?"
- "Deixa pra lá."
- "Pô, você é doidão, mesmo. Quanto tempo você levou pra escrever?"
- "O quê?"
- "Como o quê? O Feliz Ano Passado?"
- "Ah... Levei um ano."
- "Pô, e você ficou uma fera com aquela enfermeira. Meu, rolei de rir naquela parte. Marcelão, que figura. A gente tem que se conhecer, cara, temos muitas coisas em comum."
- "Sério?"
- "Com certeza, pô, posso falar? Este livro marcou uma época, tá ligado? Tipo assim, marcou uma geração, certo?"
- "Ouvi dizer."
- "Então, como vão as coisas?"
- "Indo."
- "Pô, conta mais."
- "É que estou jantando."
- "Ah... Olha só. Eu preciso te entrevistar, cara. Pro meu trabalho de TCC, tá ligado? Trabalho de Conclusão de Curso."
- "Tô ligado."
- "Aí, vamos marcar?"
- "Cara, não fica chateado, mas é a quinta pessoa que liga nesta semana pedindo, e não vai dar. Fim de ano, é sempre assim, um monte de estudantes liga, e tenho minha rotina, eu trabalho muito, não é pessoal, vê se me entende."
- "Ah, não vai dizer que vai regular?"
- "Cara, é muita gente, não dá pra atender todos..."
- "São só umas 25 perguntinhas."
- "Só?"
- "Sobre a sua carreira, seus livros, as influências, a ditadura, o seu pai, tortura, desaparecidos, esses lances, a condição dos deficientes, os jovens no mundo de hoje, a diferença entre os jovens da sua época e os de agora, fala do Renato Russo, você era amigo dele, não era? Será só imaginação, me amarro, cara, será que vamos conseguir vencer, será que é tudo isso em vão, você conheceu o Cazuza? Como era, tipo assim, o ambiente naquela época das passeatas dos estudantes? Nós vimos o filme do Cazuza e debatemos na escola a aids e os anos 80, cara, aí, você fala da importância dos livros para os jovens, de como fazer os jovens lerem mais, compara a geração cara-pintada com a da antiglobalização, Fórum Social, falta bandeiras, certo? O Protocolo de Kioto tá aí! Viu os furacões? Os americanos têm que assinar, tá ligado? Pô, deu na seca aqui da Amazônia. Posso mandar as perguntas por e-mail, a gente fala dessa crise aí do PT, você tá acompanhando, não tá? Você ainda curte política? Mó decepção..."
- "Cara, não vai dar."
- "Pô, Cariri, você me pareceu um cara legal pelos seus livros."
- "Olha, quando eu estudava, fiz um trabalho enorme sobre lógica aristotélica. Aí, liguei pra Grécia, pra falar com o Aristóteles? Não. Tive que me virar."
- "Que que tem a ver, cara?! Tu é doidão mesmo, aí, ó! Tu fala grego, maluco?!"
- "Fiz um trabalho sobre Kafka na escola. Nunca pensei em ligar pra casa dele em Praga."
- "Por que não?"
- "Porque ele morreu em 1924! O Machado de Assis também morreu. Ninguém na escola ligaria pra casa dele na hora do almoço ou jantar pra perguntar se Capitu era fiel ou não!"
- "Calma aí, meu. Nem tinha telefone naquela época."
- "Olha, vai à sua biblioteca ou use a internet. Não precisa entrevistar o autor para fazer trabalhos. Descobre você."
- "Quer dizer que depois da fama tu ficou convencido. Desculpe aí, cara, foi mal. Nunca mais leio um livro seu. Aí, ó, sabe quem morreu pra você? Eu. Tá se achando, Cariri?!"


Minha mãe, na adolescência, de uniforme do Sion, costumava esbarrar com alguns modernistas, especialmente Oswald de Andrade, na Leiteria Americana, café amargamente falido em frente ao Teatro Municipal. Ela me contou, quando me viu lendo Memórias Sentimentais de João Miramar. Perguntei se ela não falou com ele, não pediu autógrafo, não perguntou coisas. Ela disse que jamais atrapalharia a refeição de um pensador. Sua educação me privou de herdar um autógrafo ilustre.

Madrugada, Leblon, Rio de Janeiro. Um fã vê o arredio escritor Rubem Fonseca, de Feliz Ano Novo, passar com um boné enterrado na cabeça, em uma de suas caminhadas "anônimas". Aproxima-se e pergunta se ele é Rubem Fonseca. O escritor responde: "Depende."

O dramaturgo e diretor de redação da Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho, lembra um episódio que ocorreu em 1977 na USP, quando ele era estudante ainda. Durante um congresso da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), venceu a timidez e abordou o autor de Dois Perdidos Numa Noite Suja, perguntando: "Plínio Marcos?" Ele respondeu: "O tempo todo." O próprio Otavio costuma dar uma reposta inusitada, quando perguntamos "Como vai?" Ele diz: "Sobrevivendo".

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O vento, o tempo em movimento


Para registrar o retorno, a retomada, a volta da vida por aqui.
E pra dizer que às vezes a brisa no rosto é a única coisa que a gente precisa pra lembrar que está vivo.

sábado, 6 de agosto de 2011

Aviso aos navegantes

A partir de hoje, o IC está de férias! A gente se vê no meu segundo blog de viagem, 

A programação aqui volta ao normal a partir de 20 de agosto.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Anos dourados

Quero dizer que, como muita gente, aprendi a gostar de Chico Buarque ainda criança, como minha irmã caçula, Mariana, já diz gostar. E quero também, aproveitando o gancho, dizer que o ângulo da visão muda tudo - sentido, forma textura.

Ouvindo "Anos dourados", com os versos

Te quero, te quero
Dizer que não quero
Teus beijos nunca mais

pensava imediatamente que o narrador não podia afirmar a desistência ["dizer que não (te) quero"] sob pena de não ter mais os beijos daquela a quem dedicava os versos. Por todos os anos, interpretei assim.

E hoje, somente pela disposição das palavras, que mudaram a forma de ver, efetivamente, o que eu já ouvia - e deixou o verso assim

Te quero, te quero, dizer que não quero teus beijos nunca mais

Exatamente o que tentava dizer há tanto.
Nada como remodelar a velha hermenéutica.

sábado, 30 de julho de 2011

CONTO - Cadeira branca

João morreu no dia 29 de abril, há alguns anos, em uma das listas que a morte cumpre cotidianamente. Todos os vizinhos lamentaram com o mesmo jargão: “tão jovem, coitado” – reiterando aquela velha mania que têm os homens, que sempre discriminam a morte, como se ela evitável fosse.

Na verdade, João se foi aos 34, pouco mais de dois meses antes de chegar aos 35. Para ele, nem tão jovem assim. Raciocinava que sua vida, até ali, fora curta demais, e como previa morrer aos 70, tinha pela frente pouco tempo.

Quando o enfarte veio e foi, quiseram vestir-lhe em uma camisa de linho, devidamente adequada à ocasião. Talvez acreditassem que João precisaria chegar apresentável ao recinto celeste. “Sabe-se lá com quem encontrará?”. Cogitaram que ele, de toda forma, pudesse fazer uma primeira parada no inferno, talvez para pagar algum lapso rápido. Afinal de contas, tudo o que morre acaba irremediável e indissoluvelmente absolvido de seus erros. “Tão bom, coitado. Pessoa boa”.

Amarela? Melhor que seja azul, para combinar com a cor do firmamento. Pra lá é que ele vai.

Se pudesse ter levado algo para o “além-túmulo”, João queria aquela cadeira branca da cozinha, de palhinha, tinta já gasta. Desde criança, passara tantos bons momentos ali sobre, assistindo às habilidades culinárias da avó e da ama negra, que foi a primeira coisa na qual pensou, já que as duas também já haviam entrado nas estatísticas da morte. Poderiam, quem sabe, compor novamente o cenário do outro lado. Ele sobre a cadeira branca de palhinha; elas a bater massa. Ainda pensou em voltar rapidamente, levar a cadeira consigo e as lembranças – mas lembrou que “desse mundo, nada se leva” e desistiu da ideia. Deixou a cadeira (e as lembranças) lá mesmo.



Talvez, quem sabe, pudesse levar um livro; ainda pensou nisso, mas detestava a bíblia e, fora o catálogo telefônico e um livro de receitas (com aquela de biscoito de povilho e torta de castanhas do Pará), era o único exemplar que tinha em casa. Desistiu. Jamais saíra do Gênesis, embora vivesse no apocalipse.

Pensou ainda, antes de atravessar totalmente, em levar algumas fitas K7, assim, como quem não quisesse nada, dentro do bolso da calça de linho. Havia a remota, improvável possibilidade de encontrar um rádio ou coisa parecida. Ademais, que mais haveria para fazer? Junto com as fitas, podia levar pilhas. Amarelas, porque as alcalinas são caras demais e João achou melhor não partir liso, liso.

Por um instante, pensou em voltar, levar umas cuecas, meias, esparadrapo, uma bússola, coisas que, com certeza, precisará. Pensou. Talvez um mapa do lugar, se soubesse para onde estava indo, uma caixa de canetas e uma resma de papel. Um bloco, que pesa menos! Talvez uma revista de palavras-cruzadas de nível difícil, para demorar mais. Acomodou a resma debaixo do braço – precisava estar pronto para a eternidade. (TN)

quarta-feira, 27 de julho de 2011

El solis

Mafalda y la maestra:

- El sol sale por dónde?
- Por la mañana
- Pero eso no es un punto cardinal!
- Eso a él no le importa: sale igual...

domingo, 24 de julho de 2011

Fórmula de três décadas, música e Roupa Nova

Ser popular no Brasil não parece ser tarefa das mais árduas – vide a lotação em apresentações de bandas dispensáveis e de pouco talento que formam e renovam os ciclos efêmeros da música nacional que oscila entre lambada, pagode, funk, brega; que da mesma forma que são ostentados, despencam. Ser popular no Brasil, de fato, é resistir à efeméride músical, ao tempo.



E ir a um show do grupo carioca Roupa Nova é, antes de tudo, assumir-se um dos últimos românticos e chegar com a certeza de saber pelo menos parte do repertório, senão todo. Músicas do tipo que você já ouviu muito, mas não tem a menor ideia onde. Antes de tudo, é preciso estar disposto a assumir seu lado cafona, despretenciosamente poético, corajosamente ridículo.

O Roupa Nova completou 31 anos de uma carreira linear, popular à base de uma fórmula comum, mas ainda não cansada. Aparentemente. Atrai muita gente, agrada e envolve, principalmente pela capacidade de reviver, o que é muito fácil para um grupo cujo repertório mantém-se igual e ainda respaldado por novelas “globais”. A receita parece não ter erro: narrativas de amores ultraromânticos, espaço no horário nobre e público saudosista; números conquistados ao logo das mais de três décadas de vida, set list vasto e um Grammy Latino, em 2009. Aos que torcem o nariz ao repertório meloso da banda, fica o desafio de ouvir e provar que não sabe sequer uma das composições distribuídas em 22 álbuns.

O péssimo da noite foi a insistente falta de estrutura do Recife e RMR (Região Metropolitana), que não conseguem sequer ter dois eventos simultâneos no espaço do Centro de Convenções (Cecon) e o calor incorrigível do Chevrolet Hall lotado. E por causa de mais de uma hora em um engarrafamento lento, perdemos a primeira atração da noite, o show de Guilherme Arantes. Quando entramos no Chevrolet, ele já cantava a última música – como não voltou, acredito que já fosse o “bis”.


Chevrolet cheio. Quarenta minutos e muita propaganda depois, Roupa Nova entra na cena e derrama sua primeira leva de músicas-de-trilha-de-novela. Não em tom de crítica. Era exatamente o que todo mundo ali queria ver. Embora desafine gritantemente, o grupo é harmonioso entre si e tem um carisma que eu não dimensionava até então. Tem um público  (muito) diverso, conquistado há tempos, que acompanha e entra no clima da noite.

O show, comemorativo aos 30 anos, tem três “participações especiais”. No telão, os seis integrantes interagem com Milton Nascimento (em “Bailes da vida”), Sandy (em “Chuva de prata”) e ainda com o Padre Fábio de Melo (!!). A certa altura, eles “puxam” uma homenagem totalmente desnecessária às mulheres. Desnecessária porque o romantismo, por si só, já é uma característica arraigada ao feminino; desnecessária porque, se é pra fazer, que se faça direito. Com os “(d)efeitos especiais” – uma seleção de fotos que misturou Elis Regina, Yoko Ono, Lady Di, Oprah Winfrey, ita Lee –, o momento ficou deslocado e excessivamente cafona. Fez a linha apresentação de Power point.

Ademais, dentro das efemeridades da música brasileira, há de se reconhecer as conquistas do grupo. Roupa Nova tem no repertório mais de 30 temas de novelas, em 22 álbuns gravados ao longo da carreira. Cleberson (pianos e vocais), Feghali (teclado, violão e vocais), Kiko (guitarra, violão e vocais), Nando (baixo e voz), Paulinho (percussão e voz) e Serginho (voz e bateria) são indiscutivelmente carismáticos e não têm qualquer pudor de cantar todos os lugares comuns das relações, com direito a mão no peito, olhos fechados e agudos contínuos e até declarações rasgadas de amor ao público. Show bom para um repertório consolidado. Sem fórmulas mágicas.


quarta-feira, 20 de julho de 2011

Por quantos?

Aos sete, eu achava que gente de 18 era grande, adulta, dona da sua própria vida. Achava que eles, os seres de 18, já sabiam dos seus destinos, já que podiam dirigir. Era só no que eu pensava: vou poder dirigir...

Aos 18, tive que perder o medo de dirigir, assim, na bucha. Mesmo saindo da Rua da Aurora em direção a Boa Viagem e indo parar em Olinda. Precisava ainda aprender a ter noção de direção e ainda de tempo, de espaço, de responsabilidade.

Aos 25, achei-me velha pela primeira vez, quando olhei prum vidro de anti-rugas e li "25+". De certa forma, já notava que meus corriqueiros ares de poucos amigos e maus humores já tinham me deixado uma marca vertical entre as sombrancelhas.

Agora, aos 28, só penso nos 30 e nos carros que ainda terei, em tudo que evitarei para não envelhecer cedo demais, nos caminhos que evitei e naqueles que enfrentei e por onde caí. Mas penso ainda nos livros que terei para ler até os 40, em como vou encarar a mim mesma, quando chegar à última linha cosmética possível para evitar o inevitável. E, por alguns segundos, inclusive estes, eu penso em quem me tornei e em quem esta nova pessoa se tornará. Se for para escolher caminhos, quantos ainda terei?

E se vai dar tempo de ler todos os livros, de conhecer todas as pessoas, de transitar todas as avenidas. Quantas melodias deixarão de ser ouvidas, sensações esquecidas, momentos adiados?

sábado, 16 de julho de 2011

"Agora falando sério..."

*Chico Buarque de Holanda

Agora falando sério...
Eu queria não cantar
A cantiga bonita que se acredita que o mal espanta
Dou um chute no lirismo, um pega no cachorro e um tiro no sabiá
Dou um fora no violino, faço a mala e corro pra não ver banda  passar


Agora falando sério 
Eu queria não mentir
Não queria enganar, driblar, iludir tanto desencanto
E você que está me ouvindo
Quer saber o que está havendo com as flores do meu  quintal?
O amor-perfeito traindo
A sempre-viva, morrendo
E a rosa, cheirando mal

terça-feira, 12 de julho de 2011

Adeus ao velho Mussa

A gente corre pra burro em redação de jornal. Não há dia tranquilo, no máximo, um menos corrido. E é comum também ter apurações de última hora ou aquele último gráfico ou previsão que não ficaram, assim, tão claros. E nesses momentos, comum era ouvir alguém dizer: "liga pra Mussa que ele explica". A partir de agora, vai ser muito triste não poder mais fazer isso.

Conversei poucas vezes com o economista, mestre em Economia e administrador de empresas Josué Souto Maior Mussalém nesse meu primeiro ano de Folha. Apesar de saber de sua boa fama de didático, a recomendação da editora era que a gente procurasse outras fontes. Por ser muito prático e acessível, Mussa era o primeiro nome que vinha na cabeça (pra mim, junto com Tânia Bacelar e Roberto Ferreira, ambos professores e igualmente simpáticos, didáticos e acessíveis) e Lorena (Ferrário, minha chefe) pedia sempre: "gente, dêem um tempo com Mussalém". O pedido tinha suas razões. Se deixasse, toda semana, lá estava o velho Mussa dando seus palpites e explicações no caderno de Economia da Folha.

Hoje de manhã, a estagiária começou o dia: "Tati, Silvia (Baisch, sub de Economia) quer alguém pra ir pro enterro de Mussalém". Nem sabia ainda e passei o dia lamentando. Além de ter morrido jovem, com 64 anos, ele deixa um vazio porque pouca gente falava de economia de forma tão clara e com tanta propriedade. Poucos atendiam com tanta disponibilidade. A gente, claro, vai sentir falta das "quebradas de galho" dele, que remediava sempre, sobre muitos assuntos, a qualquer hora. Se fosse tarde da noite, ele dizia: "ligue aqui pra casa que eu te explico". Pronto. A partir daí, a conversa durava longos minutos. Mas era ligação terminada, assunto resolvido.

Foi minha primeira cobertura de velório. Chegamos (a fotógrafa Andréa Rego Barros, a colunista Rochelli Dantas e eu) meio constrangidas, mas já é sabido que, em ocasiões como essa, tratando-se de alguém como Mussalém, a imprensa precisava estar lá. Mas não é fácil ter que interpelar parentes inconsoláveis ou catar alguém conhecido que possa falar do momento, das memórias, do legado. Mas, enfim, foi feito.

Conversando com o cunhado de Mussalém, o médico Aníbal Gaudino, tive a reafirmação de quão bem preparado e bem informado era o economista. Também que, apesar de obeso e hipertenso, ele não procurava um médico há 20 anos. "Era uma caixa preta", comentou Gaudino. O edema pulmonar que levou Mussa, na madrugada de ontem, 11 de julho, foi fatal. Não deu tempo nem de socorrê-lo; morreu em casa, de repente.

Gentil, generoso, didático, competente, simples. O velho Mussa vai deixar saudades. Ficarão interrogações muitas sem suas aulas livres de "economês".

BOM E VELHO MUSSA - "Posso te explicar. Ligue aqui pra casa..."

sexta-feira, 8 de julho de 2011

PAUTAS - Escala do Jacarandá, primeiro navio do PAC, no Porto de Suape

Tecon Suape recebeu o Jacarandá, mês passado. Na foto, os 280 metros de comprimento e os guindastes do navio

O guindaste, mais de perto

Pátio de armazenamento de contêineres do Tecon Suape, no Porto de Suape

Mesa do comandante do Jacarandá, com as coordenadas da rota

Presidente da Log-in, empresa proprietária do Jacarandá, Vital Lopes, dando entrevista sobre a primeira escala no navio no porto pernambucano

O "pequenino" Jacarandá, que tem 280 metros de comprimento por 30 metros de largura
A fotógrafa da Folha de Pernambuco, Nathália Bormann, registrando o Jacarandá

Vida de fotógrafo, tendo que lidar com o sol. E que sol...

domingo, 3 de julho de 2011

Além da vil superficialidade

Aproveitei o meio expediente do feriado passado, de São João, para aprofundar na superficialidade. Aliás, esse era o génesis desse blog, mas há muito não faço. Fiquei um tempo cevando o texto, até decidir publica-lo.

Pois então.

Tenho convivido com uma figura controversa nas últimas semanas e observá-la me fez pensar em superficialidade e superficialidades. Para ser mais exata, me fez pensar no quanto conseguimos ser superficiais – é quase sempre regra o quão conseguimos ser rasos.

Falando dessa personagem, eu digo e confesso: várias vezes me pego queimando de raiva ou se cenho franzido, sinal de reprovação evidente a alguma coisa que ela faça. Barulho, espalhafate, palavrões fora de hora ou conversas com decibéis a mais (logo quando eu estou no auge da concentração); a lista é enorme. Ela é capaz de tirar a paz do ambiente inteiro com uma risada.

Tudo isso poderia ser desnecessário, embora pense - quando estou mais de observadora que de interlocutora - que faz parte do conjunto. E quem parar para uma conversa pontual, um assunto mais controverso – que inclua esforço, trabalho, filho, despesas – vai perceber que há mais o que se observar ali. Vai além de uma ex-hippie (de boutique) declarada, ainda fora de lugar, que já não encaixa na vibe 70’ nem está ainda modelada na realidade dos quase-30. É porque ser mãe não deve ser nada fácil, ainda mais quando o sustento é de uma fonte só; ainda mais quando se é jornalista; muito pior se o tempo (melhor, a falta dele) for seu inimigo-mor. É que me soa louco demais dividir pífias 24 horas com trabalho, carro, jornal, lista de supermercado, roupa, tinta de cabelo, conta pra pagar, cerveja pra beber, problema pra discutir e filho pra ninar.

William Bouguereau (1825-1905)
Admiration Maternelle [Maternal Admiration] - modificado

É interessante observar o “além mar” das coisas e a gente viveria melhor se se desse ao trabalho de esticar a vista. Seria melhor que ser simplesmente rasteiro e atentar apenas ao que salta aos olhos. Oras, isso qualquer um vê, qualquer simplório observador pode constatar. Acho que a graça das coisas está mesmo em olhar além, em dar atenção ao que ninguém atinou, porque aí você acaba sentindo o que ninguém sentiu e nem vai.

Meu ambiente tem sido dos mais férteis e eu adoro a tarefa diária de observar. O bom é tatear a superfície, catalogar a paleta de cores, a trilha musical. Trejeitos, percepções, passados, manias, defeitos, medos. Os pormenores têm me fascinado. Eu observo desbotes de tinta de cabelo, simetrias de barbas, formatos de unhas, o tom da pele, linhas de expressão, contornos de olhos, os entrecortes das veias pelos braços e pescoços. E, acredite em mim, isso diz demais.

Na minha personagem, a alegria transborda até quando está ausente. Ela me parece ter a obrigação de ser feliz, sem qualquer saída, sem outra condição, numa “auto imposição” constante. Tem quem se irrite com isso (já me abusei várias vezes, bom lembrar), mas também é importante notar que isso é somente a camada aparente. Abaixo há muitas outras.

Eu comecei esse texto no carro, voltando da redação pra casa, no início do feriado passado. São momentos em que a cabeça despreocupada por minutos pode mergulhar em algo, mesmo que eu não me dê conta conscientemente. Mas para não perder mais essa viagem, foi uma mão ao volante, outra na caneta, pegando os lampejos antes que eles saíssem pela janela. A inspiração tem lá seus caprichos e a gente que tem que atendê-la, na hora que chega, ou ela vai embora e aqui, no superficial, não vai sobrar nada.

É bom permitir-se mergulhos como esses. Em vários lugares, em muitas almas. Dá sabor novo àquilo que você julgava já conhecer. Uma grata surpresa a cada dia.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Olha pro céu, meu amor...

Eu amo São João por causa das lembranças. Era a época de início de férias e de chegar na casa de vovó Edda e encontrar Monteiro (meu avô materno) ocupado montando uma fogueira bem jeitosa, enorme, que seria acesa no início da noite. Era religioso. Monteiro montava fogueira também para São Pedro, todos os anos.

E chegar na casa de vovó Edda (uma casa grande e querida, no bairro da Ilha do Leite, aqui no Recife) era abrir a mala do carro para tirar uma corda de bandeirinhas ou encontrar alguém (vovó ou uma das minhas tias) colando bandeiras num barbante comprido na mesa da sala - de jornal, de página de revista Veja ou de plástico colorido. 


Era também dia de ver Francisca (a negra querida e materna, de cozinha afável - sim, elas existem fora dos livros) descascando milhos sentada na garagem. Eu ficava lá, de tocaia. Não que gostasse muito de descascar milho (ficava me coçando por causa daquele monte de cabelo), mas adorava catar as lagartas verdes e fazer maldades com elas (Freud explica, calma...).

Dia 23 de junho também era dia de ver vovó moendo milho num moedor manual, de manivela, que ela prendia na bancada da cozinha. O processo consistia em tirar os grãos do sabugo com uma faca, colocar os grãos (que saíam enfileirados e eu achava interessantíssimo) no moedor e pegar aquela massa moída pra fazer canjica e pamonha. Eu gostava mais de canjica, ainda quente, mas achava a pamonha curiosa, vestida "a caráter". Francisca era mestra em fazer aquele pacote com a palha do milho. Era por causa disso que ela dizia: "tente tirar a palha inteira, senão não dá pra fazer pamonha". E eu ia com o cuidado e experiência de neta mais velha.

E eu achava aquele moedor de ferro o máximo. Tinha que fazer muita força e minha boa vontade de ajudar acabava logo. Mas ali não tinha corpo mole. Ajudar não era só questão de opção. Todo mundo fazia parte da festinha.

Mas então painho saía pra comprar fogos - traques de massa, aliadas, bolas metralhas, vulcões, três tiros, estrelinhas -, Monteiro descia com a radiola e os LPs de Gonzagão e mainha vestia a gente de matuta. Com detalhe: enquanto todo matuto junino tem muitas pintinhas nas bochechas, Juliana e eu tínhamos apenas uma, de um lado. Sabe lá Deus o porquê...

Receber Karina (nossa única prima na época - que ainda é de terceiro grau, sobrinha-neta de Monteiro) era outro detalhe junino. E tem um último que eu não posso esquecer: invariavelmente, todos os anos, eu me queimava. Fosse por me fazer de sabichona e querer soltar "fogos de adultos", fosse por achar que podia com a fogueira de Monteiro. Sempre terminei o São João com uma lembrancinha chamuscada!

Hoje, eu sinto cheiro de fumaça e uma saudade danada. Acabei de comer um pedaço de pamonha que mainha comprou não sei onde. Nem é a mesma coisa, mas o São João do "seu" João (o primeiro nome de Monteiro) era tão bom que a lembrança não poderia ser ruim.

**



Musique-se



Noites brasileiras

Ai que saudades que eu sinto
Das noites de São João
Das noites tão brasileiras na fogueira
Sob o luar do sertão

Meninos brincando de roda
Velhos soltando balão
Moços em volta à fogueira
Brincando com o coração
Eita, São João dos meus sonhos
Eita, saudoso sertão

domingo, 19 de junho de 2011

Still writing a bad romance




I want your love and
I want your revenge
You and me could write a bad romance
(Oh-oh-oh--oh-oooh!)
I want your love and
All your lover's revenge
You and me could write a bad romance