Paula Helena Tôrres*
SEIS
“Um dia é sempre um infeliz recomeço”, pensava André todas as manhãs, ao levantar-se à contra gosto para trabalhar. Ele lutava contra o sono que lhe abatia logo cedo, munido com um cigarro dependurado na ponta da boca. Havia tentado largar o vício, mas sucumbira há pouco mais de duas semanas. “Se eu vou morrer mesmo, acelerar só vai me encurtar o trabalho” – concluiu, ao reassumir a nicotina.
“Um dia é sempre um infeliz recomeço”, pensava André todas as manhãs, ao levantar-se à contra gosto para trabalhar. Ele lutava contra o sono que lhe abatia logo cedo, munido com um cigarro dependurado na ponta da boca. Havia tentado largar o vício, mas sucumbira há pouco mais de duas semanas. “Se eu vou morrer mesmo, acelerar só vai me encurtar o trabalho” – concluiu, ao reassumir a nicotina.
O ponteiro tocava o seis no relógio e o mau humor matinal tomava conta do quarto todo. Não eram simples resmungos voluntários, mas palavrões amontoados que pipocavam dentro de sua cabeça. André franzia a testa, o que já lhe rendera uma profunda ruga de expressão vertical, disfarçada entre as sobrancelhas grossas. Saía do quarto acendendo um cigarro Hollywood.
Há três dias que o cardápio da primeira refeição era nada além de bolacha e margarina e uma xícara de café solúvel forte pra lascar. Cafeína, diziam os colegas, era um dos vícios obrigatórios de todo jornalista. A listagem ainda incluía chiclete, caneta, cigarro, cerveja e, pra variar do “c”, sexo. Todo jornalista que se preze vivia (e ainda vive) desses pequenos prazeres.
Este último não andava muito presente na vida de André. Apesar de namorar uma mulher que considerava bonita, há tempos perdera interesse nela. Faltava-lhe apenas paciência para terminar o relacionamento. Patrícia, a eleita, era falastrona e esse monte de palavras soterrara todo desejo de André. De dia, quando ela tagarelava, ele fazia o bom e velho ouvido de mercador; à noite, cumprindo suas obrigações masculinas, pensava em outra. Um passado que nunca passara.
Além de Patrícia, o jornal também consumia-lhe a vida. Estava naquela situação há anos, se arrasando desde a conclusão da faculdade, mas não fazia muita questão de mudar. Enraizado, André via a vida passar pela janela do Fiat Uno ano 92, sem ar condicionado, que cozinhava ao sol do meio-dia, no trajeto casa-redação.
André era repórter de economia do maior jornal da cidade, cargo sem grandes valores para ele. Significava apenas o contracheque mensal, garantia de pagar o aluguel, água, luz, e tédio. Até o esforço inicial para incorporar-se dos assuntos econômicos já não custava mais do que cinco minutos de um raciocínio chulo e superficial. Nada que lembrasse os tempos em que pensava ser arquiteto ou dedicar-se a estudar artes plásticas. Seus ideais de “utilidade pública” acabaram ferrando seu destino. “Hoje, eu não sirvo nem pra mim mesmo”, resumia, sempre que questionado.
Em tempos de declaração ou restituição de imposto de renda – pautas mordazes e tediosas como tantas outras – ia se enterrando, “batendo” a matéria com a ponta dos dedos e escorregando até quase cair da cadeira. Já com assuntos mais complicados, cujas informações eram ditadas por telefone e tropeçavam e caíam no meio do caminho, André levantava para “arejar” e ficava debruçado na janela da redação, fumando e olhando os pombos que empestavam a parte antiga da cidade. “Um inferno, o limbo, o purgatório”, pensava aleatoriamente entre tragos.
Às sextas-feiras, ia até o boteco da esquina pra tomar cerveja com mais uns cinco ou sete. Hábito cultivado com louvor por jornalistas e que fez brotar bares vagabundos nas proximidades das redações. Inclusive, um ex-colega largara as agruras do jornalismo para abrir um desses redutos, que acabou virando destino certeiro do começo do fim de semana: cerveja, charque e cinco fichas da radiola para cada um dos cinco ou sete. Noite garantida de legítima e pura boemia, com fossas de Lupicínio Rodrigues e sambas de Cartola ao fundo. Na volta pra casa, André ia contando os postes para não se perder.
Também era lazer juntar a turma da redação para o futebol, sempre aos domingos pela manhã, quando a ressaca da noite anterior dava condições de jogo. O futebol também podia ser pela televisão, mas esse era um programa evitado até as últimas circunstâncias – as opiniões divergiam demais, então sempre melhor reunir apenas os clãs de cada time.
Quando dava, os fins de semana também variavam para restaurantes “xulos”, de comida boa e barata, mas de procedência duvidosa. Serviram como bom pretexto sempre que André quis despistar Patrícia, que cismava em acompanhá-lo nas programações do jornal. Ele não se sentia confortável. Patrícia sempre o enchia de perguntas sobre essa ou aquela colega ou tinha comentários maldosos sobre seus colegas. “Não, Patrícia, Eduardo não é gay”, respondia, sem muita paciência.
Sábado livre era quase um milagre divino encomendado por santo. Sábado sim, sábado não, André tinha que trabalhar, mas quando ficava em casa, não tinha sossego também. Se não era Patrícia que chegava exigindo energias que ele já não tinha, era sua mãe que surgia com a faxineira para por ordem na casa (dele). E não adiantava reclamar – todo santo sábado dona Nilza estava lá a fim de garantir o bem estar do seu único filho homem. Levava-lhe roupas limpas e passadas, lençóis e comida congelada. “Andrezinho, você está cada vez mais raquítico, tem que comer direito”, recomendava aos gritos, arrancando-lhe o cigarro do canto da boca.
André era o terceiro de uma família de cinco filhos – único exemplar macho no meio de quatro mulheres: Ana, Amélia, Andréa e Adriana, seguindo a mania cafona de eleger a letra inicial obrigatória da prole. Quando era criança, para salvá-lo da sua condição humilhante de minoria, Dona Nilza dizia: “Andrezinho, você é o filho do meio, e o recheio é sempre mais gostoso”.
Na adolescência, ele não tinha dificuldades para arranjar namorada. O problema e que ele perdia o interesse por elas muito facilmente. Acabava maximizando defeitos, criando possibilidades de erros e, por fim, punha um ponto final na historia. Preferia coisas efêmeras, nutridas pelas frases do escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que lhe temperava os pensamentos quando estava de cabeça cheia (ou vazia). “Qualquer um de nós já amou errado, já odiou errado”, escrevera Nelson – então Andre entendia que, se tratando dele, o erro era caminho certo. Melhor evitar as mulheres que lhe transmitissem qualquer tipo de medo, qualquer uma que pudesse despertar sentimentos mais fortes.
Com Patrícia, as coisas tinham aviso prévio, eram demarcadas, delimitadas, sem grandes surpresas ou sustos. André sabia onde estava pisando e embora o tédio daquela relação o consumisse, ele preferia uma situação de conforto, da mesma forma como agia no jornal. Seu sonho enquanto jornalista era escrever uma grande reportagem narrando um fato importante pelo meio do mundo. Coisa tão minuciosa que lhe renderia um livro, um bom livro, prêmios e, quem sabe, um salário melhor que pagaria todas as suas manias: revista, livro, gibi, discos e acessórios de fotografia. Não interessavam grandes investimentos – sua efemeridade não permitia isso. Foi exatamente por isso que ele havia deixado Tarsila no passado. Mesmo sem saber exatamente o porquê.
André era repórter de economia do maior jornal da cidade, cargo sem grandes valores para ele. Significava apenas o contracheque mensal, garantia de pagar o aluguel, água, luz, e tédio. Até o esforço inicial para incorporar-se dos assuntos econômicos já não custava mais do que cinco minutos de um raciocínio chulo e superficial. Nada que lembrasse os tempos em que pensava ser arquiteto ou dedicar-se a estudar artes plásticas. Seus ideais de “utilidade pública” acabaram ferrando seu destino. “Hoje, eu não sirvo nem pra mim mesmo”, resumia, sempre que questionado.
Em tempos de declaração ou restituição de imposto de renda – pautas mordazes e tediosas como tantas outras – ia se enterrando, “batendo” a matéria com a ponta dos dedos e escorregando até quase cair da cadeira. Já com assuntos mais complicados, cujas informações eram ditadas por telefone e tropeçavam e caíam no meio do caminho, André levantava para “arejar” e ficava debruçado na janela da redação, fumando e olhando os pombos que empestavam a parte antiga da cidade. “Um inferno, o limbo, o purgatório”, pensava aleatoriamente entre tragos.
Às sextas-feiras, ia até o boteco da esquina pra tomar cerveja com mais uns cinco ou sete. Hábito cultivado com louvor por jornalistas e que fez brotar bares vagabundos nas proximidades das redações. Inclusive, um ex-colega largara as agruras do jornalismo para abrir um desses redutos, que acabou virando destino certeiro do começo do fim de semana: cerveja, charque e cinco fichas da radiola para cada um dos cinco ou sete. Noite garantida de legítima e pura boemia, com fossas de Lupicínio Rodrigues e sambas de Cartola ao fundo. Na volta pra casa, André ia contando os postes para não se perder.
Também era lazer juntar a turma da redação para o futebol, sempre aos domingos pela manhã, quando a ressaca da noite anterior dava condições de jogo. O futebol também podia ser pela televisão, mas esse era um programa evitado até as últimas circunstâncias – as opiniões divergiam demais, então sempre melhor reunir apenas os clãs de cada time.
Quando dava, os fins de semana também variavam para restaurantes “xulos”, de comida boa e barata, mas de procedência duvidosa. Serviram como bom pretexto sempre que André quis despistar Patrícia, que cismava em acompanhá-lo nas programações do jornal. Ele não se sentia confortável. Patrícia sempre o enchia de perguntas sobre essa ou aquela colega ou tinha comentários maldosos sobre seus colegas. “Não, Patrícia, Eduardo não é gay”, respondia, sem muita paciência.
Sábado livre era quase um milagre divino encomendado por santo. Sábado sim, sábado não, André tinha que trabalhar, mas quando ficava em casa, não tinha sossego também. Se não era Patrícia que chegava exigindo energias que ele já não tinha, era sua mãe que surgia com a faxineira para por ordem na casa (dele). E não adiantava reclamar – todo santo sábado dona Nilza estava lá a fim de garantir o bem estar do seu único filho homem. Levava-lhe roupas limpas e passadas, lençóis e comida congelada. “Andrezinho, você está cada vez mais raquítico, tem que comer direito”, recomendava aos gritos, arrancando-lhe o cigarro do canto da boca.
André era o terceiro de uma família de cinco filhos – único exemplar macho no meio de quatro mulheres: Ana, Amélia, Andréa e Adriana, seguindo a mania cafona de eleger a letra inicial obrigatória da prole. Quando era criança, para salvá-lo da sua condição humilhante de minoria, Dona Nilza dizia: “Andrezinho, você é o filho do meio, e o recheio é sempre mais gostoso”.
Na adolescência, ele não tinha dificuldades para arranjar namorada. O problema e que ele perdia o interesse por elas muito facilmente. Acabava maximizando defeitos, criando possibilidades de erros e, por fim, punha um ponto final na historia. Preferia coisas efêmeras, nutridas pelas frases do escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que lhe temperava os pensamentos quando estava de cabeça cheia (ou vazia). “Qualquer um de nós já amou errado, já odiou errado”, escrevera Nelson – então Andre entendia que, se tratando dele, o erro era caminho certo. Melhor evitar as mulheres que lhe transmitissem qualquer tipo de medo, qualquer uma que pudesse despertar sentimentos mais fortes.
Com Patrícia, as coisas tinham aviso prévio, eram demarcadas, delimitadas, sem grandes surpresas ou sustos. André sabia onde estava pisando e embora o tédio daquela relação o consumisse, ele preferia uma situação de conforto, da mesma forma como agia no jornal. Seu sonho enquanto jornalista era escrever uma grande reportagem narrando um fato importante pelo meio do mundo. Coisa tão minuciosa que lhe renderia um livro, um bom livro, prêmios e, quem sabe, um salário melhor que pagaria todas as suas manias: revista, livro, gibi, discos e acessórios de fotografia. Não interessavam grandes investimentos – sua efemeridade não permitia isso. Foi exatamente por isso que ele havia deixado Tarsila no passado. Mesmo sem saber exatamente o porquê.
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