"Eu gosto das coisas complicadas. Gosto daquilo que não posso ter, do inferno, do escuro, do amargo. O cálido já não me interessa, já não tenho ilusões, somente o que me resta e o que entendo como delírios..."
Uma caneta tinteiro repousava sobre as linhas escritas pela madrugada adentro. Insônia. O estômago ardia numa azia e Marcelo abria os olhos numa brecha. Naquela sexta, ele sentia uma enorme preguiça de viver. O vazio era exponencial, a dor era anestesia e o indiferença era grande por tudo. E todos.
Maíra dava conselhos, ouvia pacientemente, brigava com ele, mas Marcelo só conseguia ter as velhas ideias fixas. Queria deixar o apartamento de 50 m², queria que Ana lhe desse um sorriso, mas a indisposição era tão grande que dava de ombros a tudo. Nem azedo ele estava mais; já parecia aguado.
Marcelo não sabia, mas despertava desejos. Seu ar superior, a testa enrugada, o jeito soberbo afastava uns, fascinava outros. A maioria achava que Marcelo era do tipo austero, mas na verdade ele não mandava nem mesmo nele. Aliás, em nada. Até a sala de casa ficava sob domínio de Filó, o gato persa preto de olhar penetrante que ele evitava. Marcelo pensou em suspender a ração do bicho; quem sabe assim ele iria embora de vez, por instinto. Mas nada. Era mesmo incapaz de matar aquilo que o incomodava.
Foi para o banho para chorar, mas acabou esquecendo, lendo o rótulo do novo shampoo. A angústia desceu pelo ralo.
A azia aumentava. As refeições mal feitas causavam-lhe arrotos ácidos e um acúmulo de gordura abdominal. E como o mundo está aí para desfazer as nossas impressões, enquanto ele se sentia um dejeto vivo, algumas mentes pensavam nele - para o bem. Outras poucas para o mal, somente porque é necessário haver essa dualidade, mesmo que ela não nos pareça conscientemente. Marcelo não via o óbvio, mas queria entender o prolixo. Lixo.
(continua...)
(nota: "Tropicália" foi pensada como acompanhamento, mas a massa desandou)
Os ouvidos de Maíra eram, há anos, o grande alívio de Marcelo. Ela tinha a divina capacidade de ouvir, dedicava tanta atenção que seus olhos nem piscavam. Algumas vezes balançava a cabeça e esperava que ele terminasse um pensamento para interpelar. Em geral, "dava a real":
- Você sabe que está errado, né?
Para Marcelo, tudo o que saía da boca de Maíra merecia atenção. Ele ouvia, pensava e, quase sempre, ela estava certa. Todas as vezes em que se encontravam, duas a três (até quatro) vezes por semana, ele voltava para casa em paz. E isso acontecia porque o que os unia era, pura e simplesmente, um forte laço de amizade. De outras vidas, talvez. Um amor fraternal imenso que os fazia cúmplices, confidentes, companheiros. Amigos.
Mas nem sempre foi assim, com tanta paz. Passaram por crises, brigaram, e ouvir palavras duras da boca de Maíra davam uma sensação física de corte, na pele, em Marcelo. Ela sabia, fizera isso algumas vezes e em todas elas viu o amigo chorar. Mas Maíra era muito amor. Era o amor.
Naquela noite, deixou-a em casa, ganhou um puxão na orelha direita e um beijo e foi. Deitou para dormir leve. Há tempo não sentia isso, essa vontade de viver, de pensar. Percebeu que conseguia refletir sobre sua vida sem dor, listava o que tinha, tudo o que conquistara até ali. E, como era de hábito, pensava em quem cruzara suas horas nesta vida, das poucas pessoas que tinha deixado para trás. Marcelo era extremamente ligado ao humano, piedoso, penava, sofria, chorava, carregava pesos e tudo mais que cabe a esse tipo de indivíduo. Mas era leveza o que ele sentia naquele momento, na penumbra do quarto. Pensava nos pais, nos irmãos, no privilégio de ter conhecido todos os avós, duas bisavós, de ter passado poucas vezes pela morte (e por aceita-la com tranquilidade), por ver longevidade e saúde nos seus. Em instante assim, pensava em Cecília Meireles, que viveu muitas perdas físicas. Se ele também fosse escritor, não teria na morte uma fonte de inspiração, assim, tão forte, como ela.
Marcelo era de amizades forte, antigas. Os seus tinham por ele grande afeição. Era querido, embora não fosse fácil. De fato, Marcelo era um poço de contradições. Barroco, nele conviviam o amor e a indiferença (lhe ensinaram que o oposto do amor não é o ódio), a vida e o fim (não a morte), a certeza e a dúvida, a beleza e a insegurança, o rancor e a piedade, o futuro e uma dose grande de passado.
Há dias Marcelo estava inquieto. Sentia-se em um momento de letargia porque não via sentido em nada que havia construído até ali. Ele tentava falar sobre o vazio com alguns amigos, mas só ouvia que ele pensava demais e deveria relaxar. De Maíra, Marcelo ouvia coisas mais contundentes, mais inquietantes.
- Você precisa ler mais. Precisa se soltar mais desses conceitos velhos, caducos.
Marcelo sabia que Maíra tinha razão. Ele sentia que há anos não tinha sossego, que as coisas eram mais pesadas do que ele gostaria. Leveza era algo que andava longe. Resolveu que deveria "arrumar" alguém. Olhou em volta, na redação, e só viu as mesmas pessoas de sempre, suas conversas de sempre, suas agruras e limitações de sempre. Muitas vezes quis chorar, lamentar pela solidão, mas preferia contentar-se com sua própria companhia e de alguns poucos amigos.
Naquela tarde, Marcelo quis terminar logo as obrigações e sair cedo. Desceu da redação com o dia ainda claro, andando pelo bairro antigo onde ficava o jornal. Não sabia exatamente o que fazer com aquele tempo e desejou ter alguém que pudesse decidir para ele aonde ir.
Entrou no shopping center vizinho, passou em frente a uma agência de viagens. Paris, Salvador, Cancun, Rio de Janeiro, "Ilhas gregas em cinco dias", "um fim de semana em Gramado". Seu nível de tédio subiu. Marcelo detestava clichês, como a muitas outras coisas. Suspirou fundo. Apanhou um panfleto e dirigiu-se à funcionária da loja:
- Tem algum roteiro para uma viagem diferente, Leila? - disse, lendo o nome da moça de cabelos tingidos e nariz pequeno.
- Temos todo tipo de pacote, senhor - Leila respondeu, em meia voz.
- Algum para a África? - arriscou.
- Não, senhor. Não trabalhamos muito o turismo exótico. Mas temos excelentes promoções para Miami e Orlando.
Marcelo sentiu uma pontada no estômago.
- E o que há de bom lá? - rebateu, no deboche, fingindo interesse.
- O senhor pode levar os filhos para a Disney. Parcelamos em 12 vezes sem juros - ela retrucou, estendendo um panfleto.
- Ótima sugestão, Leila. Vou avaliar.
Saiu pensando como alguém que tenha filhos (assim, no plural, seriam quantos? Dois? Seis?) pode ter também coragem de sair com eles do País.
- Doze vezes?
Viu um novo café no shopping. Hesitou sentar ali porque isso, com certeza, o faria pensar, mas não resistiu ao vício da cafeína. Deixou-se sentar, abriu o cardápio, olhou demoradamente, pediu o de sempre.
- Um capucchino grande, por favor. Com o dobro de canela e sem açúcar.
Olhou para o panfleto:
- Nossa... Bariloche, Buenos Aires... - pensou, amassando o panfleto.
Estendeu a vista à frente e viu uma moça sentada. Parecia impaciente, balançava o pé pendurado da cruzada das pernas. Olhava o relógio de pulso, e adiante.
(...) Aí está o mistério que, realmente, não é mistério. É uma verdade historicamente demonstrada: - o canalha, quando investido de liderança, faz, inventa, aglutina e dinamiza massas de canalhas. Façam a seguinte experiência: - ponham um santo na primeira esquina. Trepado num caixote, ele fala ao povo. Mas não convencerá ninguém e, repito: - ninguém o seguirá. Invertam a experiência e coloquem na mesma esquina, e em cima do mesmo caixote, um pulha indubitável. Instantaneamente, outros pulhas, legiões de pulhas, sairão atrás do chefe abjeto.
(...) Quem ia mudar qualquer coisa neste País? A esquerda tem um canalha para exercer uma liderança concreta e proveitosa? Senhoras entraram no debate. Fez-se, ali, uma alegre pesquisa de pulhas. Mas os canalhas lembrados eram, ao mesmo tempo, imbecis. E o que a História pedia era um crápula com seu toque de gênio. Em suma: não ocorria aos presentes um nome válido. A última palavra foi minha. Disse eu mais ou menos o seguinte: - enquanto a esquerda que aí está não for substituída até seu último idiota, não vai acontecer nada, rigorosamente nada. Um outro, também de saída, com uma certeza em um só tempo jucunda e cruel: - ‘A presente Esquerda não tem competência nem para soltar um buscapé’.
Nelson Rodrigues, para O Globo, em 9 de janeiro de 1968
Era terça, mas Marcelo estava tão cansado que se sentia como numa repetitiva segunda-feira. Havia chegado em casa moído, deprimido, exaurido e vazio. Abriu a porta do apartamento, viu a samambaia seca na varanda. Com o vento, as folhas se espalhavam pelo chão. No puff de couro, debaixo da samambaia morta, dormia Filó. Poderia matá-lo também.
Sentando no sofá, ele esticou as pernas que doíam pelas intermináveis horas sentado. Os dias na redação estavam cada vez piores, repetitivos, e embora ele gostasse, já faltava tesão. Tensão. Custava a pensar, estava aéreo, tenso, distante. Os amigos já reclamavam. Os mais chegados diziam que Marcelo estava ali só de corpo, mas era difícil pra ele explicar. "Não, eu não tenho nada", dizia. Tinha, embora não soubesse.
Entrou na cozinha, abriu a geladeira. Era a visão da sua depressão: dois ovos que ele não tinha ideia de quando chegaram ali, um pacote de queijo parmesão ralado, aberto há décadas, maçãs já murchas de tão esquecidas e uma garrafa de água. Meio vazia. Só faltavam as pilhas. Suspirou e desistiu de jantar. Foi tomar banho.
Marcelo não tomava banho frio. Fosse qual fosse a temperatura do dia, puxava o chuveiro pro modo "inverno" e curtia o vapor d'água embaçando o vidro do box. Pensava na vida, ou chorava, ou cantava. Esperava que dali, daquele momento solitário, ele chegasse em soluções, em ideias. Mas nada. Nada de compreender seus próprios porquês, sua própria existência, seus sentidos.
Fechou a água. Abriu uma garrafa de vinho tinto seco, chileno, de preço médio. Buscou uma taça. Puxou um LP da estante, pôs na radiola, acendeu um cigarro. Pôs-se a ouvir Gil.
Marcelo era um perdido. Continuava a ser, como nunca. Perdia a chave todo dia pela manhã, perdia a hora sempre e, vez por outra, queria perder o juízo. Esquecer o bom senso não era bem seu forte e, exato por isso, não se considerava alguém que merecesse mesmo confiança. "Imagine quando chegar o surto? Mato alguém", refletia, sem querer, vez por outra, geralmente antes de dormir.
Dormia tarde, invariavelmente, por mais que houvesse sono. Talvez por castigo.
Vivia o dilema do vazio. Tinha a cabeça cheia, a agenda abarrotada, planos mil e reflexo zero. De um tempo pra cá, pouca coisa o inspirava. Depois de Sandra, abandonara o desejo por filhos (talvez uma maneira certa, mas pouco certeira, de propagar a si mesmo); depois do domingo, queria deixar de viver alguns instantes, mas não chegava a ser um suicida. Ainda assim, pendia para o pessimismo, mas nem mesmo a sua depressão era constante. Que fosse.
Se fosse mulher, por certo teria menstruação irregular, TPMs periódicas e perigosas e um latente ímpeto pelo crime passional. "Matar por amor" - ele pensava - "é das coisas mais femininas que existe". Toda mulher mata, raciocinava ele. Se não tem coragem de puxar o gatilho por amor ao falo, mata a si mesma: por paranoia, de ciúmes, de fraqueza, excesso de si ou falta de amor próprio.
Marcelo pensava sobre o amor, em um sábado à tarde. Chegando do plantão no jornal, esticou a rede na varanda, pôs Oswaldo na radiola e ficou balançando com a ponta do dedão esquerdo. Olhando pro teto, pensava na vida. Havia um projeto, uma causa, um motivo? Não tinha resposta. Tentou cochilar, não conseguiu. Pensou em levantar, a preguiça não deixou.
Deixou-se ficar mais um tempo no ócio. Aliás, ócio era uma coisa condenada internamente por ele. Marcelo exigia demais dele mesmo, tinha pouco tempo para o nada, mas acumulava tanta coisa que não fazia nada com a qualidade que desejava. Sandra, a do racha, reclamava o tempo todo da pilha de atividades que ele insistia em aumentar. Mas Marcelo só sabia viver assim, acelerado, movido à adrenalina do dead line, do prazo apertado, da vida que corre, que passa sem ser vista.
Na verdade, não era assim desde o início. Marcelo, quando interpelado por Sandra, confessava que era vagaroso, preguiçoso convicto, daqueles que dormem sem culpa por horas e derrubam o despertador num tapa. Embora lembrasse de cobranças paternas, que o crucificavam por sua preguiça como a Santa Inquisição aos pecadores, ele mantinha algo disso ainda em si. Juntando a aceleração das intenções ao ritmo lento das atitudes, adivinhe? Resultado quase sempre nulo. Planos demais, ideias demais para resultados de menos. Protelar era seu hábito.
Terminou o sábado no cinema, sozinho, como era de seu feitio. Marcelo aprendeu a não depender dos outros e obrigava a si a condição de autossuficiente. Era uma independência patológica. Na fila, com ingresso em uma mão e um saco de pipocas na outra, pensava nisso: em como a vida o ensinou a lição de ser sozinho. Lembrou de quando ficou horas debaixo do chuveiro frio, com febre, querendo evitar pedir remédio à avó. Lembrou de quando andava quilômetros de casa para o cursinho, simplesmente para não pedir ao pai que lhe cedesse passagem. Mas a vida até ali o guiava assim. Talvez fosse um caminho sem volta.
Sozinho, ele chamava atenção dos casais por perto. As pessoas criaram uma mística sobre isso. Ir sozinho ao cinema é a materialização pública da solidão que ninguém quer admitir que tem. Nas duas ou três primeiras vezes, ele até sentiu uma dorzinha entre o coração e o estômago, uma angústia de não saber onde pôr as mãos, mas conseguiu domar a si mesmo. A partir dali, ia sem muita dor.
Sim, mas naquela tarde, ele ainda pensava sobre o amor.
Você dedica horas, perde o sono. Corre, pergunta, questiona, quebra a cabeça, ignora a dor de cabeça, o stress, as costas. Você descomplica até o que não entende, tira de onde não tem e, de novo, dedica horas. Dedica a vida. E pra quê? Será sempre pouco, meu velho. Nunca o suficiente. E você tem ainda, somente, o direito de ficar calado.
Haverá sempre quem ignore, quem critique. Dificilmente você ouvirá flores, porque elogios são para bocas evoluídas, e elas são raras.
Tem consolo para você? Pra mim, é saber que cada palavra que sai é cuidadosamente pensada, que cada pergunta que é feita quer responder um monte de gente. Dedico-me a isso diariamente, orgulhosamente, feliz por cada erro e sem modéstia para cada acerto.
Um desabafo rápido de quem não dormiu direito e ainda se digna a se indignar com o mundo.
A vida, este eterno dilema. Vai haver sempre essa história de decidir entre ir ou ficar, entre resistir e ceder? Vai existir sempre? Quando eu era criança, achava que aos 30 anos, ou perto disso, eu seria outra, estaria noutra. Mas a cabeça ferve. É a crise de Balzac; a terceira guerra psíquica mundial da minha cabeça que tenta, em vão, entender outras.
Acredite, crescer é um trabalho grande. Você sabe, não sabe? Tenho certeza que sabe. Crescer não significa necessariamente pagar conta, decidir aonde ir, a que horas, com quem. Não é fazer compras, abastecer a geladeira, decidir sobre a disposição dos móveis na sala de alguns metros quadrados - é dar conta da própria vida. Vai além. E se for assim, pareço estar na mais tenra infância. Depender emocionalmente de avais, precisar de propostas e contrapropostas, de aceites, é mesmo necessário? - "autoquestiono". Por ora, sim - respondo, firme.
Respire. Respire fundo. Aí a cabeça terá tempo de voltar ao lugar, de substituir surtos de mudanças imediatas por paciência. Doses homeopáticas. Não é bem pôr-se na água e deixar-se levar; é analisar o mar, checar a bússola e seguir em frente. E não importa como, chegar sempre ao destino final.
Brasileiros têm até amanhã para fazer a declaração do Imposto de Renda (IR)...
- Não! Tá péssimo! - Marcelo resmungava logo pela manhã, batendo mais uma de suas matérias corriqueiras. Imagine que, do alto de sua maturidade profissional, ele já não sentia tesão pela coisa. Refiro-me ao Jornalismo: Marcelo tentava insistentemente manter a acesa a chama daquela relação. Alguma coisa tinha que funcionar. Sandra já rachara.
Marcelo mudou-se do apartamento de Sandra, na Encruzilhada, para um alugado, de pouco menos de 50 m², no centro da cidade. Procurava um imóvel que tivesse varanda, queria ter espaço para pendurar a samambaia e uma porta para fechar quando não quisesse assistir aos banhos de Filó.
- Preciso me livrar desse gato - pensou, olhando o bicho ronronar num sono de fim de tarde. Via Filó dormindo e sua angústia aumentava. A cena ganhava uma trilha sonora mental automática, na cadência de Dorival Caymmi:
Um pescadô tem dois amô/
Um bem na terra, um bem no mar...
Bateu as mãos nos braços da poltrona e saiu. Precisava respirar. Entrou no shopping, conferiu a programação do cinema. Nada agradou. Entrou nas Lojas Americanas e perdeu quinze minutos escolhendo filmes. Comprou dois, duas garrafas de Stella Artois e Doritos. Olhou as informações do pacote, mania que aprendeu com Sandra, antes do racha.
- Aquela surtada... - resmungou baixo, lembrando o hábito da ex-namorada. Sandra vivia de dieta e dizia que comia mal. Marcelo traduzia que Sandra se sentia mal comida. Na mesma hora, lembrou de Chico Buarque:
...tanto homens me amaram/
Bem mais e melhor que você...
Marcelo tinha surtos esquizofrênicos de ciúmes. Duravam cinco minutos e uma vontade assassina. E passavam. Era um homem controlado, achavam os terceiros.
Pagou as compras, voltou pra casa. Filó continuava no mesmo lugar. Marcelo parou para observar se o bicho respirava. Torcia encontra-lo morto. Acordou do transe maléfico, colocou as sacolas em cima do balcão da cozinha. Parou para ler as sinopses:
- Se assistir isso agora, não acordo vivo segunda.
Passou pela sala rápido, sem olhar para Filó. Passou para o quarto.
- Mau, vamos ver um filme na Fundação. De lá, saímos para comer pizza e você me conta o que houve - propôs uma amiga ao telefone.
Sem muita saída para livrar-se daquele marasmo vespertino de domingo, Marcelo aceitou o convite. Maíra era amiga da escola, conhecia-o desde os 15 anos e já fora ombros muitas vezes até ali - mas não seria mais uma. Maurício não tinha a menor vontade de chorar.
Tomou uma ducha, colocou uma roupa clara, sandálias, e sentiu-se leve. Passou pela sala e fitou Filó, que se espreguiçava da soneca. Censurou o pensamento e saiu sem chavear a porta. Sentou no carro, abriu a disqueteira e foi buscar Maíra em casa.
- Tais ouvindo essa merda de novo? - ela gritou, entrando no carro, puxando-o pela ponta da orelha direita e dando um beijo no rosto. Fazia sempre isso.
- Eu gosto de Oswaldo, porra. Muda aí...
Maíra diminuiu o volume e deixou Oswaldo continuar.
- É um filme russo, em russo, com legendas em inglês. Um russo que vive em depressão em um apartamento no centro de Moscou. - disse Maíra, descrevendo o enredo de logo mais e limpando o rímel do canto do olho. Marcelo achou uma ironia de mau gosto.
ENREDO Russo em depressão
Compraram um saco de pães de queijo e dois copos de mate. O filme começa com um gato olhando-se fixamente no espelho. Marcelo virou para Maíra, talvez para protestar. Ela olhava para a tela, mascando um pedaço de pão de queijo. Ele tirou o iPhone do bolso, colocou os fones nas orelhas, escondidos debaixo dos cachos do cabelo, e ligou Oswaldo.
- Puta que pariu..
Duas horas e 56 minutos e meia eternidade depois, o filme termina. Na última cena em que Marcelo estava de olhos abertos, o mesmo gato lambia a pata direita em primeiro plano. Atrás, uma foto de uma velha. Marcelo fechou os olhos e não abriu mais.
- Dormisse o filme todo! - reclamou Maíra, descendo as escadas.
- Nada disso. Estava refletindo sobre solidão...
- Viu que sensibilidade? Achei a luz do filme de uma melancolia transcendental...
- Onde vamos comer? - perguntou Marcelo, cortando o momento pseudocult da amiga.
- Vamos no Alfredo!
Alfredo era uma pizzaria pé de chinelo no centro da cidade. Comiam lá desde a época da escola. Marcelo sentou meio impaciente. Maíra pediu o de sempre: meia havaiana, meia lombo canadense. E coca-cola.
- Diz. Por que se separaram? - começou a moça, com os cotovelos apoiados na mesa.
Marcelo não acreditou na pergunta. Olhou firme para as sardas que pingavam pelo rosto de Maíra. Vislumbou um liga-pontos.
- Ah, fala sério. Não dava mais... - tergiversou.
Ela, interrompendo: - Era um lar, Mau...
- Eram duas pessoas que não se suportavam, não se falavam, não se comiam e criavam um gato. Tá mais pra campo de concentração - disse, num passo acelerado. Maíra conhecia aquele tom e mudou de rumo.
Passava do meio dia. No Recife, o asfalto estalava de calor. Com um Free apagado na boca, Marcelo abanava o tempo com o bloco de apurações. A caneta, presa no crachá que lhe pendia do pescoço, fazia pequenos riscos na camisa de malha barata. Desenhava, distraída, enquanto ele procurava o isqueiro. Olhou para os lados e viu Ana, colega de outro jornal, que também levava chá de cadeira do carro, acendendo um Malboro Light.
- Ana, fogo?
Ela lhe estende um Zippo prateado. Ele traga e devolve.
- Pauta chata... - ele fala, meio tom, querendo iniciar um passatempo sincrônico.
Ana olha pra ele de rabo de olho, sem virar a cabeça.
- É...
Marcelo sabia da fama da colega. Palavras muitas, só no papel, escritas por ela ou por um "tal" C.F.Abreu. Ana era meio melancólica, beleza média, óculos e tinha um carro semi-novo ainda cheio de prestações. Aquele cigarro era o primeiro em cinco dias, quebrando mais uma tentativa frustrada de parar.
- Viu o resultado do Oscar? O mudo ganhou...
- Não - interrompe a moça, cortando a conversa e entrando no carro do jornal. Deu um tchau até simpático e foi embora.
Aliás, Marcelo tinha a sensação de estar sempre esperando pelo que não chegava. Mas o carro chegou. Acenou para o motorista, tragou, pisou e entrou no carro.
- Porra, Raimundo! Quarenta minutos...
- Bora, viado, deixa de reclamar!
Marcelo sabia que as coisas não iam bem. Naquela semana, Sandra resolveu cobrar-lhe compromisso mais sério, exigiu burocracias que ele não tinha dinheiro nem saco para dar.
- Um anel, Marcelo! Compromisso... financiamento... data... vencimento... material escolar...
Sandra saiu falando de suas insatisfações, mas Marcelo traduzia tudo como uma lista de cobranças ad aeternum.
- Ou vai ou racha! - ele traduziu, ao fim do falatório de Sandra - Racho!
Rachada a relação, ele saiu de casa carregando uma caixa de vinis que foram de seu avô, a samambaia que pendia na varanda, umas revistas e Filó, o gato persa preto. Este último foi um favor. Além de alérgico, o bicho deixava Marcelo entediado. Aos domingos, enquanto ela lixava as unhas na varanda, debaixo da samambaia, e fofocava com Joana assuntos melancólicos, Marcelo ficava paralisado e enojado de ver o gato em seu ritual de limpeza. Filó lambia a pata esquerda e passava na cabeça. Marcelo tinha nojo dele.
No jornal, Marcelo dividia bancada com Eduardo. O colega boa praça era melhor repórter que ele, já tinha traçado metade das mulheres da redação e ainda tinha os dentes brancos, numa simetria perfeita. Quando Eduardo falava, Marcelo prendia atenção nos caninos, sisos e molares, tentava encontrar alguma mancha. Mas nada havia de depreciável em Eduardo.
Depois de tudo, ainda deu pra ser feliz. Mesmo numa overdose de ironia da vida. Por que houve momentos de verdade no caminho, nessa vida, nisso que agora é amor. Tanto faz, por que poderia nem ser. Tinha tudo para não ser. Mas é. E é sempre mais.
Quando vem por perto, depressa, de mansinho, para aconchegar sorriso, para um alisado esquecido. É conjunto unitário, sem igual. Bem que se quis, antes, a distância. Mas isso foi antes. Agora, não tem como, não tem jeito.
Eu não preciso de mapas para amar você, ou regras, ou medições. É sem tamanho, de todo jeito, por todos os lados. Com sim ou não. Com gritos, com espelho; no ritmo que der, que vier.
Tanto faz, virou paz, virou destino, virou mais. Tem um abraço, devagar. Beijo e beijos.
A realidade não é para os fracos. Nós, os fracos, quanto postos diante dos fatos, trememos, tergiversamos, fingimos que a conversa não é conosco. Na década de 40, quando já insultava nos palcos sudestinos, Nelson Rodrigues fazia das infâmias públicas pedras que eram atiradas contra ele mesmo - porque a maioria era capaz de jurar de joelhos, com as palmas das mãos juntas, que jamais viu ou pensou algo semelhante ao que suas tramas escancaravam. Eram ofensas. Mas infâmias alardeadas geram reações que, aposte, têm maioria de concordância; o que sobra fica de aceite com aquele riso cínico abafado de quem não tem lá muita coragem de assumir.
Na última apresentação do último dia do Janeiro de Grandes Espetáculos, a história de "A mulher sem pecado" pareceu óbvia. E de tão óbvia, uma surpresa. A ótima montagem da Cia de Teatro Arlecchino, de Minas Gerais, é apresentada em cima de um cenário simples: porta, escada e o arcabouço da cena por onde atores entram e saem, se enfrentam, mas não se olham. Há insultos, delírios e cismas que se põem como verdades. Tudo bem Nelson.
Tudo verdade, inclusive as risadas e sussurros da plateia a cada deixa rodrigueana: "toda bela mulher deveria ser uma amante lésbica de si mesma". E não é? Aliás, se a verdade do palco fosse simplesmente essa, Olegário (interpretado por Paulo Rezende) estaria coberto de razão ao apontar Lídia (de Ana Luiza Amparado) como uma adúltera dissimulada. Segunda mulher do (falso) paralítico, Lídia lida com sombras, com dúvidas, acusações. Olhos a cercam por todos os lados, inclusive os do público, porque fica uma dúvida cruel se ela está ofendida como uma ré inocente ou assustada com a verdade. Por fim, está pouco claro se havia qualquer razão em Olegário, mesmo que ele mesmo concretasse que há tipos de mulheres que têm obrigação de ser infiéis. E a mulher de um paralítico, como a sua, seria uma dessas.
Nelson, atesta a história mal contada, era tarado, pornográfico, deturpador dos costumes, denigria a imagem da família e, se assim for, deve estar sendo (sub)utilizado até hoje como norte das produções televisivas. Tempero usual, como sal, das novelas. Mas não vamos adentrar discussões sobre o que se torna (despida) a célula da sociedade nas mãos de Nelson Rodrigues, porque se este é o ano do seu centenário de nascimento, as cansadas análises ficarão ainda mais esgotadas. Vamos nos poupar.
A questão aqui é que, ao perceber Nelson, é mais direto sentir que a vida é bem assim, cheia de dissimulações, de contradições. Que sua podridão, aquela que cai na sua cabeça em algum momento (lembra?), quando você descobriu que as coisas não eram "bem assim", é inerente e faz parte da fórmula. Se por seus traçados não há muitas saídas além da tragicômica, então por onde saem as surpresas, as interjeições e os incômodos que você sente? Onde está o novo na receita que deixava (e deixa) plateias incomodadas e pudicas como estivesse diante do novo inominável?
O problema é que Nelson virou rótulo. Já era, em seu tempo, mas hoje é o narrador dominical de "A vida como ela é..." (assim mesmo, reticente, como se esperasse complemento), que consegue ser muito mais amoral que qualquer reality ou dança modista. Mas quem olha pro umbigo no espelho e é romântico o suficiente para trocar as reticências de Nelson por um leve e assumido ponto (.)? Dizendo de outro jeito, a realidade é para quem aguenta sua força. Mas a moral é leve.
"A história começava com um casamento entre uma jovem feia e ingênua e um viúvo dominador que não conseguia esquecer a primeira mulher - linda, inteligente, fabulosa -, todos morando numa fazenda isolada. Até aí era um plágio de 'Rebecca, a mulher inesquecível', de Daphne de Maurier, que Nelson vira no filme de Hitchcock com Joan Fontaine e Laurence Olivier. (Os moleques chamavam o filme de 'Recível, a mulher inesquebeca'.) Mas, dali para frente, sentia-se o dedo rodrigueano: a primeira mulher morrera estraçalhada por cachorros em uma situação misteriosa. O viúvo, aleijado de uma perna, tinha um irmão irresistível que passara a dar em cima da nova cunhada. Esse irmão tinha uma amante escondida na floresta e, dentro da casa da fazenda, havia uma prima a fim do viúvo. Os dois irmãos tinha uma mãe dominadora e as subtramas ficam por conta de um pelotão de irmãs solteironas e virgens.
Leão Gondim, entusiasmado, rugiu OK. Os seis capítulos começariam a sair enquanto Nelson seguiria fazendo outros, para ter sempre alguns à frente. Precisavam de um título - e de um pseudônimo, porque Nelson, o autor 'sério', não queria assinar o folhetim. Para que não tivesse dúvida, deveria ser um pseudônimo feminino. Freddy concordou, mas achava que deveria ser um nome inglês - se fosse brasileiro, ninguém leria. Nelson insistia num nacional, algo assim como Suzana, nome da mulher de seu primo Augusto. Freddy cedeu e forneceu o sobrenome.
Daí nasceu 'Suzana Flag'. Com essa assinatura, o título do folhetim só pode ser aquele: 'Meu destino é pecar'."
"Depois de praticamente inventar o teatro brasileiro, o autor de 'Vestido de noiva' viu-se na avenida Rio Branco, escura e deserta, caminhando feito um zumbi em direção à leiteria Palmira, no largo do Carioca. Ele, sua mulher, sua cunhada Julieta e sua sogra foram comer o 'jantar Avenida' da leiteria: bife, batata frita e dois ovos. (Pediu pão por fora.) O resto do elenco fora comemorar na chique sorveteria 'A brasileira', na Cinelândia.
E sabe porque Nelson não foi com os outros para 'A brasileira'? Porque não tinha dinheiro.
Não lhe faltaria, evidentemente, quem disputasse a primazia de pagar por ele. Mas, naquele momento, ainda não se dera conta de que, fechado o pano de 'Vestido de noiva', ele deixara de ser o miserável que se tornara desde a morte de Roberto*.
A morte de Roberto. Quando Nelson pegou o bonde e volta para a praça Bandeira, já eram quase duas da manhã de 29 de dezembro de 1943. Sem tirar nem pôr - nem um dia, nem uma hora, talvez nem um minuto - completavam-se catorze anos que seu irmão morrera."
Livro de Ruy Castro
*Roberto Rodrigues, um dos irmãos mais velhos de Nelson, que fora assassinado pela recém-desquitada Sylvia Seraphim. Digamos que estava de pé no lugar errado, na hora errada. O tiro foi fatal.
Mastigar bem esta vida é a primeira lição para não morrer engasgado. Os dias passam, viram anos bem rápido e você só vai ter tempo de aprender uma página de cada vez. Ou aprende, ou a lição vai se repetir lá na frente. Invariavelmente.
Tornei-me homem cedo. Fui pai cedo e não tive outra saída. Dali a meses, minha vida mudou totalmente. Era a hora de pôr a cabeça no lugar, mas o que eu fiz foi ter outro filho. Aos 20 e poucos, tinha mais duas bocas, além da minha, para alimentar. Fazia-me de bom filho para parecer bom pai, mas, na verdade, só conseguia ser bom profissional. A vida boêmia também ia bem e a oficial se desfez.
Mas o pontilhar do meu trajeto era tão frouxo, tão irracional, que eu fui incapaz de voltar à casa um, jogar os dados e jogar do mesmo jeito. A ponto de. Anos depois, lá estava eu: bem acima do peso, mais velho que meu RG mostrava, muito mais boêmio que poderia cogitar. Hoje, faço planos porque planejo morrer cedo e não posso deixar todas essas bocas desamparadas.
Tornei-me também uma mulher sozinha. Arrumei tantas brigas, disse tantos impropérios que só consegui desfazer laços. Hoje vivo em um nó. Pego-me lembrando de quando as netas eram crianças e fazia parte do roteiro que meus filhos as trouxessem para mim. Da dama que fui, seguiu-se um casamento forçado, mais filhos que os dedos de uma mão, mortes, agouros e uma língua ferina. Dela, sobrou pouco de mim. Só me reconheço nas fotos da parede: dali eu ainda posso ser o que queria ter sido. Eu era muito.
Fazer balanço do ano é perceber que as coisas mudam rápido, que a vida traça sua cartilha e é capaz de mudar cenários e desfazer certezas. Foi necessário que o ano de 2011 terminasse mesmo, por completo, e que outro chegasse acelerado, para que pudesse ser descrito; uma tentativa de deixa-lo fazer valer até seu último instante. Foram mais de dez dias de balanço, e nada. A única necessidade, por ora, é talvez poder catalogar para o futuro, para não esquecer que as coisas mudam. Sempre.
Dois mil e onze foi um ano que, literalmente, começou mostrando ao que vinha. Em seus primeiros segundos, no dia 1° de janeiro, surgiu para ensinar que há decisões que, por mais difíceis que sejam, precisam ser tomadas, e que há muitos pontos finais nessa vida. Só que os pontos finais requerem maturidade e ela não vem sem dor, sem dúvidas.
Nos seus primeiros segundos, 2011 abriu sua primeira página, deu um tapa na cara e disse: vai, escreve aí pra nunca mais esquecer. E aquela lição foi relembrada por todas as suas 360 e poucas páginas seguintes, sem titubear.
Aquele 2011 também teve algumas doses fortes de decepção; ensinou que o que é veneno pode (e deve) virar antídoto. A mágica está bem aqui: mãos, pés e uma cabeça pra pensar. Mostrou também que há surpresas boas no meio da multidão e que genética não dá predisposição ao amor, não é determinante de caráter e jamais será lei para o afeto.
Mas 2011 veio também para acalentar. Reiterou que sentimentos mudam, que as pessoas se remodelam dentro de você e que isso pode fazer com quê muitas sumam, tal como fumaça. Vapor, aliás, que se esvai sem rastro. Foi um ano que corrigiu a si mesmo, controlou seus caminhos e manipulou uma parte da vida.
Mais que isso, 2011 fechou sua contribuição assinalando que os tempos são outros, principalmente quando lições são definitivamente aprendidas. Amigos da vida renascem, laços são refeitos ou desfeitos. Abriu, então, precedentes para que seu sucessor seja uma época de provas, literalmente: ensinamento aprendido e posto em prática. Ficam votos de notas altas, voos altos.