quarta-feira, 9 de agosto de 2006

"... Era um coisa sua que ficou em mim..."

Eu tomava banho por volta das 7h da manhã. Minha mãe batia insistentemente na porta, dizia que precisava falar comigo. Eu busquei no meu arquivo se havia feito algo de errado naqueles dias... nada me ocorreu. “Deve ter acontecido alguma coisa”. Pensei logo na minha tia, que estava viajando com meu tio e primos.

Saí e vi minha mãe chorando, contando para a minha irmã. Vovó...

Eu fiquei em choque. Sem dúvida é a pontada mais forte... não dá para descrever. Aquela criatura meiga, calma, havia partido durante a tranqüilidade do seu sono, ao lado do meu avô. Seu companheiro de toda a vida.

Não sabia se chorava, se consolava minha mãe, se acalmava minha irmã. Se existe um sentido para a expressão de “perder o chão”, eu conheci naquela hora.

Chegar naquela casa, que tem a cara da minha infância, e ver meus tios chorando, meu avô desconsolado, foi uma imagem que, nem na minha imaginação fértil – capaz de pensar as maiores atrocidades – eu fui capaz de cogitar. O bolo em cima da mesa, feito por ela em sua última noite de vida, parecia aumentar a dor da ausência. E não tinha ninguém para me oferecer um pedaço, como ela costumava fazer, mesmo que depois me olhasse e dissesse: “Tá gordinha, heim?”.

O tumulto era grande. Subi e fui em seu quarto, onde “ela” ainda estava, enrolada no lençol, na mesma posição em que eu a flagrava em seus cochilos de domingo. Era a minha avó, mas o susto me fez recuar. Desci, respirei e voltei.

Seus óculos em cima do criado mudo. Fui perto dela e sem tirar o lençol, tateava, talvez para ter certeza de que era ela mesma. Os braços gordinhos, os pés pequenos... Constatei, mas continuava sem acreditar. Naquela hora, sim, eu chorei de dor.

Fui no quintal, que é o lugar que mais lembra tudo. Mas ele já não lembrava nada. A nova reforma, que jamais terminará, tinha arrancado todas as árvores, tinha desfigurado todos os cantinhos por onde eu brincava. As plantas estavam murchas, outras mortas. Eu, atônica. Olhava, não via nem entendia nada. De tudo, restava o cheiro e as imagens que eu ainda tenho, as únicas sobreviventes. No lugar das nossas bicicletas, o carro da funerária estacionado onde antes havia um jardim.

Não sei como, mas cheguei dirigindo ao Morada da Paz. O nome já combina com o estilo de vida que a minha avó sempre teve. No caminho, minha irmã, minha prima e eu, conversávamos e ríamos das presepadas que vovó sempre aprontava. Nisso, comentávamos a última: minha mãe havia encontrado chocolates na gaveta do criado mudo. “Trela”, como as que ela fazia sempre.
As guloseimas falavam muito mais alto que os altos níveis de colesterol... mas o que é uma vida sem sabor? Mesmo que tivesse duas xícaras a menos de açúcar do que a receita recomendasse, para “não ficar muito doce”.
Do que vale a vida pela metade? Comamos as duas bandas... “foi só um pedacinho”.

Por várias vezes vi minha avó fazer coroas de flores para velórios. Caprichosa, colava as letras da faixa uma a uma, juntava flor por flor. Eu achava aqueles arranjos de péssimo gosto, mas ela me dizia que era uma homenagem. Ontem, vi a nossa para ela. Tinha antúrios, flores do campo brancas, rosas vermelhas e carinhos-de-mãe – como ela mesma me ensinou, muitas vezes, como chamar cada uma delas. Perfeita!
“Saudades eternas do esposo, filhos, filhas, netos e netas”... Dos filhos, todos os seis (cena vista pela primeira vez por mim). Dos netos, apenas os mais velhos: Juliana, Arthur e eu. Aos pequenos, sobra a dádiva de somente lembrar dela sorrindo, oferecendo chocolate às suas “fofuras”.

O semblante era de paz. Da paz que ela teve em vida, e com a qual Deus a abençoou no momento da partida. Depois da missa (sobre a qual prefiro não tecer qualquer comentário), eu deixei-lhe um bilhete e um beijo na testa. Testa fria, para o beijo mais quente que eu lhe dera. “Até, vovó”... e fechou-se a imagem dela.

Corri no carro e peguei uns cachos de flores que havia tirado do quintal. Escondi debaixo do casaco, para não chamar atenção. Vi descer no túmulo, olhei o caixão de cima e joguei-lhe as flores. As mesmas com as quais ela fez minha coroa na Primeira Comunhão. De novo, a dor da perda... era ela, indo embora.

As lágrimas dos meus tios e avô, que por tantas vezes me pareciam insensíveis, ali mostravam tudo que ela representava. O abraço no meu primo, o abraço em Francisca, companheira de toda vida e “tia” por direito adquirido... sua pele fria e escurecida, que substituía a fina e alva de sempre. Branca, limpa... de cabelos finos e olhos cinzas e cheios de “vovó”...

No bilhete de despedida, lia-se:

Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo e procurei no escuro
Alguém com seu carinho e lembrei de um tempo
Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de chôro
Desculpa para um abraço ou consolo

Hoje eu acordei com medo, mas não chorei
Nem reclamei abrigo
Do escuro eu via um infinito sem presente
Passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim (que não tem fim)
De repente a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua
Que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu
Há minutos atrás.

- Escrita pelo meu Poeta maior, para sua avó Maria. Pedi licença para oferecer à minha.
E eu, que nunca havia dedicado-lhe linhas, hoje dedico estas, aquelas que levou consigo entre as flores e as lágrimas de alegria por tê-la tido.

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