domingo, 13 de setembro de 2009

Coloque um comprimido debaixo da língua

Dona Dilene deve ter uns 70 e todos anos. Chegou meio tonta ao hospital, com um pico de pressão alta, amparada por uma das netas. O médico reclamou com ela, dizendo ser um aburdo que estivesse com 18 por 10. "Altíssima, altíssima!", dizia. Mas dona Dilene lhe deu os ombros. Já tinha passado coisas demais até ali para se preocupar com um fedelho diplomado e vestido de branco que quisesse lhe dar lição de moral.

O doutor lhe deu um comprimido para botar debaixo da língua e pediu que sossegasse até fazer efeito. Ela sentou-se, olhou para todos os lados daquela sala grande, com cortinas, vidros e cheiro característico. Deve ter batido um despero por ter que ficar quieta por ordem médica, então ela puxou conversa com uma enfermeira que tomava soro e fazia nebulização ao seu lado. Ali começou o falatório.



Aquela senhora inquieta mas de aparência frágil é uma cardíaca incorrigível que carrega no peito o coração de um jovem há nove anos. "O meu já não me servia mais. Estava dilatado, inchado e me internou 13 vezes em um ano", contava a todos na sala. "O médico dizia que não tinha jeito e que eu teria que fazer um transplante, mas que era perigoso. Aí eu disse a ele: me coloque aí que eu quero tentar", falou, com ar desafiante, batendo as mãos uma na outra.


Foi num domingo que Dona Dilene recebeu o esperado telefonema. Finalmente, seu coração novo havia chegado, depois da morte de um rapaz de 18 anos. "Eu tinha feito uma feijoada e ia comê-la com tudo que eu tinha direito. Mas aí me ligaram do hospital e eu tive que ir. Saí de lá me despedindo do povo: gente, quarta-feira eu tô de volta".

Da alegria por ter conseguido um novo coração, dona Dilene fica triste apenas de não ter podido conhecer a família do doador. "Eu queria abraçá-los e dizer que o coração do filho deles tá aqui dentro", disse, batendo no peito. "Mas nem pude e fiquei muito triste. Vi outros transplantados dando flores às famílias e eu não pude fazer isso. Depois, até procurei o hospital pra saber quem eles eram, mas não me deram as informações. Diziam que não tinham mais autorização, por que um transplantado costumava beber e ligar pra família do doador pedindo dinheiro", lamentava, olhando pra mim. "Tem gente pra tudo..."



"Ah, os remédios contra rejeição também me deram problemas nos rins. Quase que precisei de uma hemodiálise", completou.

Dona Dilene já estava louca pra ir embora e chamou o enfermeiro: "Já tô bem. Vou indo".

- Olhe, não faz nem meia hora que a senhora tomou seu remédio. Espere até ele fazer efeito, respondeu o rapaz de branco.

A senhora se zangou e começou a sacudir as pernas. Acalmou-se apenas quando o enfermeiro ligou a televisão e ela se entreteu com a reapresentação do último capítulo de Caminho das Índias. Sentei na cadeira que estava ao seu lado e ela disse, olhando para Tardelle, que se recuperava também de um pico (altíssimo) de pressão:

- Vocês de casam quando?
- Vai demorar ainda - respondi.
- Ah, mas vocês são muito parecidos. Parece ser um casal muito feliz.


Do outro lado, Tardelle se contorcia, buscando uma posição que lhe aliviasse a dor de cabeça.

- Ah, nós somos.